Divisões Perigosas ou Unidade Duvidosa?

 

Resenha de "Divisões Perigosas", organizado por Peter Fry e Ivone Maggie, escrita pelo Antropólogo Márcio Goldmann – MN/UFRJ – e publicado na Folha de São Paulo em 16/06/2007. 

"Divisões Perigosas" dá continuidade a uma conhecida intervenção política contra o Estatuto da Igualdade Racial e a lei de cotas em tramitação no Congresso Nacional: de seus 46 artigos, dois terços já foram publicados em jornais e revistas de grande circulação nacional (11 deles na Folha). Seu argumento não é menos conhecido: qualquer política pública em benefício dos que sofrem discriminação racial é perigosa e corresponde a uma forma de racismo.
Se a intervenção é política, sua legitimidade é buscada na qualificação profissional dos autores. O que permitiria esperar mais rigor nos textos e uma maior clareza na explicitação das opções intelectuais adotadas. Mas não é difícil perceber, desde o título, os pressupostos de "Divisões Perigosas": falar em raça é "perigoso" porque "divide" uma unidade transcendente, a humanidade (alguns preferem a sociedade ou a identidade nacional), e porque, garantem os cientistas naturais que colaboram no livro, "raça" não existe. O que "existe" é, de um lado, o "código genético"; de outro, completam os cientistas sociais, a estrutura e os valores da sociedade brasileira (que, asseguram, não é racista).

Conceito de raça
Se raça foi durante muito tempo um conceito tido por científico, o reconhecimento de que certezas passadas da ciência não passam, hoje, de erros, deveria levar a uma certa modéstia, não a novas certezas mais uma vez disseminadas com "autoridade científica".
Intelectuais acostumados a lidar com a construção social do conhecimento, a inextricável mistura de ciência e interesses e a pôr os fenômenos em seu contexto, deveriam admitir que a recusa do conceito de raça pela genética não significa a "descoberta" de que raças não existem.
E que essa recusa não tem o poder de fazer calar categorias homônimas utilizadas por outros agentes sociais em suas lutas.
Isso não ocorre apenas quando se evoca a ciência para garantir a inexistência das raças, mas também quando se opõe a "verdadeira" história da África ou a estrutura "real" da sociedade brasileira ao que se considera meras ilusões. "Desessencializar" é tarefa complexa, especialmente quando, via de regra, consiste na substituição de uma essência por outra.

Enfrentar o racismo
"Raça" não é nem uma coisa cuja existência ou inexistência poderia ser arbitrada pela ciência, nem um simples recorte equivocadamente efetuado em uma unidade originária. É uma categoria que pode ordenar de diferentes maneiras a diversidade do real e da experiência.
Quando os movimentos negros falam em raça, não estão se referindo a genótipos ou a louváveis ideais abstratos de igualdade, mas a experiências coletivas de discriminação e resistência.
Quando o combate às desigualdades raciais assume a forma de políticas públicas é para enfrentar o racismo no campo sociopolítico, não apenas no das ideologias e preconceitos.
Ao silenciar sobre as lutas e reivindicações dos movimentos minoritários, o livro converte alvos do racismo em racistas potenciais e confunde o combate à discriminação com "políticas raciais" inventadas por intelectuais influenciados por idéias estrangeiras e políticos em busca de votos. E ao se concentrar nas "falsas idéias" e não no conteúdo efetivo das práticas racistas, acaba por associar essas lutas e essas políticas à Ku Klux Klan, ao apartheid e até ao nazismo, disseminando um medo que não sabemos bem de quê ou de quem é. Talvez de uma experiência sociopolítica visando modificar o quadro geral de desigualdade e exclusão no qual vivemos.


MARCIO GOLDMAN é professor associado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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