A coisa mais estranha, mãe: Rascismo

 

Trecho do quadro 'Perfil' de Paulino Varela Tavares, sobre as experiências deste caboverdiano que através de um convênio de intercambio cursou economia na UFRGS em Porto Alegre. Publicado no Jornal da Universidade em setembro de 2001.

Por Ademar Vargas de Freitas


Paulino Varela Tavares nasceu no dia 10 de outubro de 1972, em Tarrafal, na Ilha de São Tiago, onde está a capital oficial de Cabo Verde, a Cidade da Praia (Mindelo, na Ilha de São Vicente, é a capital cultural). Veio de uma família numerosa, tem quase 30 irmãos por parte do pai, criado dentro dos padrões de antigamente, quando os homens tinham várias mulheres. Alguns dos irmãos, ele nem conhece, só sabe que existem. Com os que conhece, se dá muito bem. Quatro deles estão na França, e dois, em Portugal.

A mãe sempre foi pai e mãe: desempenhou as duas funções, trabalhando como lavadeira num quartel do exército. Teve sete filhos. Paulino é o mais velho. Depois vieram Carlos Manuel, Maria de Fátima, Vitor Manuel, João Batista, Dionísio e, finalmente, Nísia. Como se vê, se os portugueses não conseguiram impor seu idioma como a primeira língua de Cabo Verde, onde se fala primeiro o crioulo, pelo menos conseguiram impor seus nomes próprios. Nisso, Paulino está de acordo: “Imagine um cabo-verdiano que se chamasse Michael, ou Jennifer… Isso tu não vais ver nunca. Vais encontrar João, Pedro, António, mas Michael não. Aqui no sul do Brasil é diferente, porque houve muita imigração européia, alemães, italianos…”

Racismo à brasileira

Paulino diz que o que mais lhe chamou a atenção aqui no sul do Brasil foi o racismo, uma atitude desconhecida em Cabo Verde, onde a maioria da população é constituída por negros e mulatos. Ele conta que é comum a quem vem de países africanos ligar para casa nos primeiros dias e dizer: “Mãe, não quero ficar mais aqui, estão me tratando muito mal”. Tratar mal, nesse caso significa desconfiar que, por ser negro, você é ladrão ou assaltante, no ônibus, no táxi, na banca de guloseimas. Ou, simplesmente, não considerá-lo digno de ser atendido num restaurante (mesmo que esse restaurante esteja numa zona de colonização alemã ou italiana e seja especializado em servir turistas brancos e endinheirados).

É ignorância. Paulino sabe que é ignorância e que não pode permitir que esses incidentes atrapalhem seu caminho. “Temos que ir pra frente, seguir nosso objetivo. Temos que aprender a conviver com essas coisas. E denunciar, sim. Embora se saiba, por experiência própria, que não vai dar em nada.”

Em 1997, ele passou por uma situação “curiosa” num restaurante em Canela, onde foi com mais três cabo-verdianos para comer massa. “O garçom pediu desculpas e disse que o dono não queria que nos servissem por sermos negros. Fiquei me sentindo mal durante um tempo. Entramos com queixa na polícia, mas nunca fomos chamados a depor.”

Em outra ocasião, na Chocofest, festa do chocolate, em Gramado, recusaram-se a vender-lhe uma peça de chocolate, dizendo: “Primeiro, mostra o dinheiro”. Ele perguntou, por que não pediam dinheiro adiantado para os demais compradores (todos brancos), e a vendedora revelou o que pensava, com toda a clareza: “Ah, esses aí não roubam”. Paulino deixou assim, foi comprar chocolate em outro lugar.

Racismo, pra ele, já não era novidade. Logo que chegou a Porto Alegre, morou na Casa do Estudantes da UFRGS, no Campus do Vale. Para chegar lá, pegava o ônibus Campus-Ipiranga, ou o Pinheiro, e quase sempre ia junto com um colega branco. Naquele tempo, era freqüente haver blitz nos ônibus. E, sempre que havia, ele era revistado, mas o colega não. Um dia, Paulino perguntou a esse colega por que revistavam os negros e os brancos não. E ele respondeu: “Olha, Paulino, isso é racismo mesmo”.

Outra vez, ia para casa, de táxi, com a namorada, quando o motorista começou a falar com alguém pelo sistema de rádio. “Em pouco tempo, cinco carros de polícia cercaram o táxi e pediram nossos documentos. Mas, quando viram a carteira da OAB, mostrada por Eleonora, começaram a ir embora devagarinho. Ela entrou com processo, mas nunca chamaram.”

Além de sofrer com a desconfiança que desencadeia o racismo incubado por gerações, Paulino também tem notícias das brincadeiras não menos contundentes a que os negros são submetidos onde quer que haja pessoas ignorantes. Como exemplo, cita o que ouviu de outro cabo-verdiano residente em Porto Alegre: em aula, um aluno (branco, mas com sobrenome Black) fez algo de errado, ao que outro aluno (também branco) comentou: “Tinha que ser um black”.

Paulino diz: “A gente fica triste, mas, o que fazer? Há mudança, mas é muito lenta. Imagino como era 20 anos atrás. É muito pouco para uma cidade como Porto Alegre, para um estado como o Rio Grande do Sul.” Em breve, para ele, esses relatos serão apenas uma lembrança, amarga mas longínqua, enquanto, para boa parte da população gaúcha e brasileira essas coisas continuarão a fazer parte do cotidiano. Até que se cumpra a lei.

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One Response to A coisa mais estranha, mãe: Rascismo

  1. Olívia says:

    Ficou muito bom o texto.
    Sou paulista e moro aqui há 1 ano. No Brasil todo existe muito racismo, mas aqui em Porto Alegre é impressionante. Em São Paulo é mais disfarçado, as pessoas até pensam mas não falam, porque “pega mal”. Aqui é descarado, chego a ver pessoas exibindo seu racismo com orgulho. Vergonhoso…
    Muito bom o blog, gostei.

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