Vestibular da Universidade Federal de Rondônia terá sistema de cotas para índios em 2004

Originalmente publicado no jornal Estadão do Norte/Porto Velho no dia 27/05/2003. 
 
Pela primeira vez na história da Universidade Federal de Rondônia
(Unir), a instituição discute a adoção de sistema de cotas para negros,
índios e portadores de necessidades especiais. Segundo o professor
Adilson Siqueira, chefe do Departamento de Sociologia e Filosofia e
presidente do Consea (Câmara de Graduação do Conselho Superior
Acadêmico), várias propostas serão analisadas e o sistema de cotas deve
ser implantando já para o vestibular 2004, com data prevista para o fim
do segundo semestre. Confira abaixo a entrevista com o presidente do
Consea sobre esta e outras questões sobre a universidade.

Quais foram os temas tratados no seminário realizado semana passada na Unir?
Adilson
Siqueira – Fez-se um diagnóstico da situação da Unir. Um dos temas
tratados foi o déficit de professores. A falta de estrutura para os
cursos é uma coisa que preocupa. Uma das propostas é que alguns cursos
não tenham novas turmas no próximo período. Este é o caso de
Enfermagem, em Porto Velho. Além deste, todos os cursos oferecidos no
interior do estado também correm o risco de não terem vestibular. Mas
isto ainda não está definido, teremos outras reuniões para confirmar
esta posição. Nós queremos o vestibular, mas não existem condições para
realizar seleção para todos os cursos.

Quando será decidido o sistema de cotas para negros, índios e portadores de necessidades especiais?
Siqueira
– Na primeira quinzena de junho faremos um debate com toda a bancada
política estadual e federal e promoveremos um outro seminário. Nesta
ocasião trataremos da definição de quais cursos não farão parte do
vestibular 2004; a adoção do sistema de cotas para estas categorias e
também discutiremos a adoção das notas do Enem, Exame Nacional do
Ensino Médio, como forma de pontuação. Os representantes dos estudantes
secundaristas também querem incluir na pauta desta reunião o sistema de
cotas para alunos da rede pública.

A idéia é adotar o sistema de cotas para todas as três categorias?
Siqueira
– Acredito que este é um assunto muito polêmico. Na minha opinião, não
incluiríamos os negros, já que a comprovação é realmente muito difícil
e trabalharíamos com uma grande faixa da sociedade: praticamente 70%
dos brasileiros têm origem negra. É difícil estabelecer quem é negro.
Já sou mais simpático a adoção de cotas para os índios. Acredito que
seja menos complicado também. Esta é a mesma situação de alunos da rede
pública, é um universo grande demais para que seja estabelecido reserva
de vagas. Embora saiba-se que a maior parte dos alunos venham de
escolas particulares – principalmente os acadêmicos de cursos ditos
concorridos, como Direito, Administração, Medicina, Economia, etc.

Como seria estabelecido, com tanta miscigenação, o "grau indígena" de um vestibulando?
Siqueira
– Existem comunidades e entidades que trabalham diretamente com os
indígenas. Há várias ONGs e instituições de apoio à causa indígena em
Rondônia. Essas instituições poderão ajudar a identificar
verdadeiramente o perfil do candidado indígena. Mas também há um
projeto, do Padre Zenildo, em criar um curso específico para atender
esta clientela.

Minha opinião é que se faça um vestibular
específico para os índios, e eles poderiam, com esta seleção, concorrer
a qualquer curso oferecido pela Unir.
E quanto aos deficientes físicos?
Siqueira
– Fala-se portadores de necessidades especiais. Bem, este é outro caso
polêmico já que mesmo que a universidade ofereça vagas, outras mudanças
são necessárias. Desde o acesso ao campus, feito por ônibus não
adaptados a este grupo, até a estrutura física do local, a falta de
bibliografia em braile, entre outras coisas.

Todos os professores da Unir já sabem a linguagem dos surdos-mudos? Esta não é uma exigência para professores universitários?
Siqueira
– Sim, mas os professores, na maioria, não sabem. Então, estamos
realmente preocupados em realizar a inclusão social, mas não estamos
preparados para estes casos.

O sistema de cotas já seria implantado no próximo vestibular?
Siqueira – Sim, a proposta inicial é fazer o sistema funcionar no próximo vestibular.

Já há data marcada?
Siqueira
– Provavelmente no final do segundo semestre. Falou-se em setembro mas
acredito ser muito cedo para acontecer, o ideal é que se fizesse ao
final do ano letivo, em novembro.

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Raça, sociologicamente

José Carlos dos Anjos – Doutor em Antropologia
– Professor do Departamento de Sociologia
– IFCH/UFRGS.

 
Os espaços
de interação que envolvem processos de recrutamento,
filtragem e rusgas
sociais, estão informados por esquemas geradores de apreciações e
expectativas do tipo: "quando o negro não suja na entrada, suja na
saída". Conceituar raça do ponto de vista sociológico é levar em conta
o peso histórico do efeito agregado de milhares de reconhecimentos
cotidianos ligeiros e insustentáveis como esse. Trata-se do efeito
histórico de dispositivos objetivos e de disposições subjetivas para
repartir e definir o lugar das pessoas tendo como uma das bases de
apreciação o fenótipo. O "lugar de negro", esse execrável princípio de
partição de populações, se faz evidente porque existe esse substrato
material causador de impressões marcantes em disposições subjetivas
preparadas para racializar.
 
Não é porque
cientistas dizem que raças não existem que elas passam a não existir
socialmente. Historicamente, a não existência de raças precisa ser
praticada, imaginada em dispositivos institucionais concretos, tornada
presença visível de negros nos espaços mais caros da nação, sob pena de
ficarmos condenados à presença visível da insistência de raça.
 
A entrada
nos campos mais especializados de concorrência social como é o caso das
profissões liberais, a universidade, os mundos artísticos de elite,
estão duplamente interditados aos negros. Em primeiro lugar pelas
exigências vinculadas ao direito de entrada, condicionadas pelo peso
das heranças (no caso do vestibular, o capital econômico que faculta o
acesso a cursinhos, por exemplo).
 
Em segundo lugar, a cor da pele conforma um habitus
racista que se expressa, sobretudo nos momentos de seleção para cargos
e funções dos espaços sociais mais institucionalizados. O modo de
funcionamento do racismo limita tanto mais as expectativas com relação
a candidatos negros quanto mais elevados os níveis de concorrências.
Mais ainda do que a ausência de capital econômico, cultural e social as
trajetórias negras carregam uma herança (negativa) que se reproduz
continuamente, que é o destino na forma como ele é socialmente
construído e incorporado. Isto é, uma criança negra que não vê nenhum
médico negro nas novelas e não tem nenhum parente médico dificilmente
poderá desenhar para si um destino de médico. Uma família negra que
sabe que um investimento custoso nos níveis iniciais de ensino não irá
se reverter em possibilidade de entrada na faculdade para a sua criança
dificilmente fará esse investimento por um longo período de tempo. Não
se trata apenas, portanto de uma questão de desigualdade na
distribuição de renda. Há uma desigualdade na distribuição de
expectativas de ascensão social. É essa reorganização nacional da
economia das expectativas que está hoje em jogo quando se fala em
políticas afirmativas.
 
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Cálculo de probabilidades sobre a implementação das cotas

 

 

 

 

 

 

 

Denise Fagundes Jardim – Antropóloga
– Professora do Departamento de Antropologia
– IFCH/UFRGS – Núcleo
de Antropologia e Cidadania

Há uma grande
probabilidade de que
os egressos da universidade,
em especial, aqueles
formados pelas ciências humanas, conheçam muito
da história do Brasil a partir do
enfoque dos brasileiros
como parte do mundo
dos civilizados. É provável que
conheçam nossa história
entrelaçada a escravidão
de negros e aprisionamento de indígenas
como uma "etapa
superada" das relações sociais
neste nosso mundo social.

Há, também,
uma forte probabilidade
que esses egressos
dominem argumentos de um
debate constitutivo da antropologia
como ciência, quando
no século XIX os profissionais
se debatiam com os parâmetros
de cientificidade e atuavam científica e
politicamente denunciando o quanto o racismo
encontrava na ciência as bases
de sustentação para
classificações fenotípicas e de presunção de
inferioridade e superioridade racial. 

Há uma enorme
probabilidade, sabendo que
esses alunos se
tornarão profissionais no âmbito
do Brasil, que tenham um
conhecimento bastante
fundamentado e sejam mextremamente
articulados para falar sobre
esse Brasil, denunciar injustiças
sociais e, de alguma maneira,
outorgar-se no direito e no dever
de "melhorar" a sociedade.

É provável
que repitam genericamente que
o Brasil tem uma dívida histórica
com o segmento negro
e indígena, e que os capítulos
recentes da história
do Brasil republicano não vem cumprindo com
as promessas de igualdade
de oportunidades. 

Mas, há também
uma enorme possibilidade que
os mesmos sujeitos que
falam sobre o Brasil não
estejam sendo preparados nas universidades
para vivenciar a diversidade
cultural e as desigualdades, se não como
um Brasil que se
localiza fora da universidade,
em um lugar
distante. 

As cotas
são fundamentais
para a universidade, para
uma sala de aula
diversificada em que,
nem o professor possa tecer
suas teorias, nem
os alunos façam afirmações, sem
ter de submete-la às objeções
de seus colegas, com
experiências diversas. 

É claro
que advogo as cotas como
algo que pode ser
proveitoso para as ciências
humanas, mas lembro dos livros
de etnomatemática indígena publicados recentemente
por antropólogos, das
aulas de orientação espacial
que recebemos entre
os quilombolas em Mormaça.

Portanto,
deve
haver coisas
que não
imagino e
que me
inclinam a
acolher o ingresso
de cotistas
como uma abertura
para novos
problemas e desafios
científicos. Talvez
eles nem
venham,
nem cotistas, nem
desafios científicos.
Mas não
problemas, me
contento em
entrar em
sintonia
com meu
século e com
a
necessidade de uma ciência
que se descolonize e que,
no
caso da UFRGS, se desprovincialize.

  1. As cotas e ações
    afirmativas tem o mérito
    de fazer sair do armário
    algumas presunções sobre
    a raça. Não só
    as que circulam de forma ampla
    entre aqueles que
    tem a experiência-de-perto sobre o ônus
    da classificação e a vivência dos "tribunais
    cotidianos", como
    me lembra a colega
    Daisy Barcellos. Esta é uma experiência que
    fica opaca quando
    vista de longe pelos
    que, do alto de seus
    condomínios, os observam.  Lembro que muita
    gente teve que reconhecer,
    por contraste,
    de que é "quase-branco" e isso
    já foi um enorme
    passo para pensarmos sobre
    a quem socialmente
    nos dirigimos quando
    falamos de raça? O debate transformou o indizível
    em uma realidade que
    permite inspecionar quais as
    situações que
    convertem uma diferença, em
    uma desigualdade. 
  1. Sou contra "tribunais
    raciais", inclusive os cotidianos.
    Defendo a autodeclaração. Não me
    agrada a idéia
    de tribunais que
    checam a veracidade da auto declaração
    de cor ou origem,
    que te colocam como
    objeto e não como
    sujeito histórico. Ou,
    que te "incitam
    a falar de si como
    um dos pobres
    perseguidos do mundo" e não
    com a dignidade
    de quem veio ao mundo
    para negociar novas
    perspectivas e políticas
    públicas. Em um ambiente
    tão crítico, o constrangimento
    moral é um dos mecanismos
    de evasão escolar
    que não é uma inovação
    na universidade. 
  1. Acredito que as cotas
    aprovadas tornam-se a nossa responsabilidade
    de inclusão de negros e indígenas
    na universidade. Passamos da promessa
    para a difícil tarefa
    de não comprovar as teses
    contrárias às cotas e diplomar
    os ingressantes.
  1. Deveríamos aproveitar a oportunidade
    para pensar sobre
    novas formas de refletir
    e pensar sobre a evasão
    escolar, sobre políticas
    estudantis dignas, sobre uma sala
    de aula pautada pela
    prática do questionamento
    e do diálogo. Tudo
    o que inclui e promove a permanência
    de cotistas deve promover a vida
    acadêmica das unidades
    e dos demais estudantes. 
  1. O que me
    incomoda é que o tribunal
    já começou e abre seus
    trabalhos dizendo que
    preconceito não existe porque
    raça não existe. Que
    espécie de retórica
    monocromática é essa? Ela
    é "puramente" científica
    ou está engajada em
    colocar um "pé
    na porta?" Uma coisa é tecer
    uma teoria sobre
    o mundo, outra coisa
    é discorrer sobre o seu
    mundo social mais
    próximo e abolir a possibilidade de falar
    sobre raça porque
    não é cientificamente correto.

De outra
parte, a cota não
é uma unanimidade entre os negros
e devemos respeitar esse fato.

Muitos estudantes
e formados negros no Brasil têm o mérito
de diplomar-se na universidade, ingressando por
vestibular. 
Há mérito e muito
investimento nisso. Há também
um custo familiar,
uma série de saberes,
como se comportar, como
não errar, como
ser, no mínimo, perfeito.
Nenhum destes formados, por
certo, pensara até então,
o efeito de ter o apoio
do Estado. Apenas o ônus
de ser visto como
um diferente.

Ocorre que algumas vozes
negras são veiculadas e dizem que
"não precisam de cotas".
Já se antecipam ao bombardeio
racista que o
incriminaria por passar "por
baixo dos panos".
Devemos respeitar a experiência e
a escolha de cotistas e não
cotistas ao se submeter ao vestibular
através do sistema de
cotas. Devemos sim nos
ater sobre como
vamos lidar com as perversidades
do racismo que espreita
nossas relações, que não
são o futuro das cotas,
mas nosso presente.

Portanto,
nosso problema atual
não é se as cotas
servem ou não para
promover situações de igualdade
de condições e de acesso
à universidade. Isso já
foi votado pelo congresso. Não
podemos ter a arrogância de dizer
"aqui não, neste pedaço
eu que mando".
Somos tão somente funcionários
federais. As vagas não
são "nossas" e sim, vagas
da universidade pública.

Há uma grande
probabilidade de que
sem as cotas
é a
universidade quem
está perdendo
: perdendo em aprender
a lidar com os desafios
da diversidade. Sim,
a diversidade não é o
paraíso, tampouco é o
Brasil.

O que
não podemos é preparar um
inferno para os cotistas.

Esse
não seria o nosso inferno
futuro, não há uma catástrofe
que se anuncia, apenas
vozes divergentes e
creio que podemos conviver
com a divergência. O que
não podemos conviver
é com o totalitarismo
monocórdico que sustenta
que as diferenças
trazem problemas. Não
é necessário temer aquilo
que já presenciamos.

Afinal,
há uma grande probabilidade
de que já estejamos
sentindo todos os sintomas
da implementação de cotas
de ingresso de negros
e indígenas na universidade.
O sistema de cotas, inclusive
pelo que exige de troca
de idéias e abertura
de novas atitudes,
possivelmente já começou.

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Ameaça a conselheiros ou ameaça a privilégios?

Resposta do Levante Popular da
Juventude a acusação de ameaça física aos conselheiros do CONSUN no jornal Zero
Hora.

  Nós, militantes do Levante Popular da Juventude , manifestamos nosso absoluto
repúdio à manipulaçao grotesca operada pelo Jornal Zero Hora  com o
objetivo claro de transformar nossa disposiçao em debater com os Conselheiros
da UFRGS sobre as cotas em uma ameaça de agressão aos mesmos.
 
A reportagem do dia 22 de junho da ZH, sobre a suposta coação que os
conselheiros da universidade estariam sofrendo, é o ápice de um processo de
manipulação orquestrado pela mídia contrária as cotas e aos movimentos sociais.
Este trabalho de distorção da verdade começou há quase dois anos com o
ocultamento da mobilização dos segmentos da sociedade favoráveis as cotas . No
último período, a grande mídia, além de velar as mobilizações em defesa da
democratização da universidade, tem superdimensionado as ações políticas do
embrionário "movimento" anti-cotas.

Por último, a reportagem acima citada acusa o Levante  da Juventude de
estar coagindo os conselheiros da UFRGS através de mensagens aeletrônicas. Para
sustentar tal disparate, ZH descontextualiza uma frase do e-mail enviado por
nossa organização no qual unicamente nos colocavamos a disposição dos
conselheiros para levar a eles informações sobre a proposta de cotas na UFRGS.
A mínima leitura do próprio quadro da ZH, na página 39 da edição de 22/06/07,
onde aparece apenas parte de nossa mensagem, já mostra que nós estavamos
claramente colocando-nos à disposição para levar o debate e as informações a
todos os conselheiros que o desejassem, no local em que escolhessem. Por isso
indicamos "saber onde trabalhavam" (dado público, pois são funcionários
da Universidade Federal) e que poderíamos "acompanhá-los onde fosse
preciso", ou seja, levar informações àqueles que não vieram às dezenas de
debates realizados sobre as cotas na UFRGS, no local que estes determinassem.
Este foi o sentido único e claro da mensagem.

Evidência de que o e-mail enviado não continha ameaças aos destinatários é a
resposta que alguns conselheiros enviaram aceitando o convite ao diálogo e
inclusive elogiando a nossa atidude de abertura ao debate. [Para que não pairem
dúvidas sobre o conteúdo do e-mail anexamos a esta nota a mensagem na integra
juntamente com a resposta emblemática de uma das conselheiras que o recebeu.]

O debate e a troca de idéias que nos propomos a realizar com os conselheiros é
um processo inerente às sociedades democráticas do qual ninguém precisa ter
medo. Só tem medo do debate quem sabe que suas posições só se sustentam por seu
poder econômico e não pela justiça de suas propostas.

Além de produzir acusações infundadas, é curioso que este periódico tenha concedido
espaço na matéria apenas a um professor sabidamente anti-cotas sem dar voz ao
contraditório, atitude completamente contrária às regras elementares do
jornalismo democrático.

A capacidade de distorção dos fatos se torna ainda maior quando se sabe que
dentre os coordenadores do movimento anti-cotas na UFRGS existem pessoas como
Gabriel Marchesi, que já se declarou fascista e admitiu ter convocado pessoas
identificadas com a causa Nacional-Socialista no Brasil, para pensar,
"juntos, uma maneira eficaz de deter esses odiosos vermes judeus.",
publicado em reportagem divulgada na Folha de São Paulo em 08 de junho de 2005,
fato negligenciado pela mídia gaucha. Ou seja, enquanto a Zero Hora necessita
manipular fatos para desconstituir o movimento pró cotas, simplesmente ignora
fatos concretos e públicos sobre o caráter de alguns integrantes do grupo que
rejeita as ações afirmativas e que demonstram as verdadeiras  intenções e
motivações de um segmento dos promotores da campanha contra cotas.

Sabemos que por trás desta reportagem há uma campanha difamatória permanente da
grande mídia contra os movimentos que lutam pela igualdade e pelos direitos
humanos. Mas a tática de deturpação da verdade empreendida por este periódico,
com tal manipulação grotesca contra o Levante da Juventude assemelhasse
claramente aos método dos defensores da ditadura quando acusavam de terrorismo
aqueles que lutaram pela democracia.

Reforçamos, portanto, nosso posicionamento de abertura ao debate com todos
aqueles que se dispuserem a tanto e rejeitamos qualquer tentativa
anti-democrática de desqualificação dos setores da sociedade que historicamente
lutam por uma sociedade menos excludente.

Não nos intimidaremos com ataques vís aos nossos movimentos. Sabemos que esta
não é a primeira nem a última vez que nossos movimentos são atacados
covardemente pela grande mídia. Mas também sabemos que quando os de cima
tremem, é porque os de baixo se levantaram. E certamente porque acertaram no
seu ponto fraco. A disposição democrática ao debate franco de idéias e fatos.

Com certeza se nosso trabalho gerou tamanha indignação por parte das forças
conservadoras é porque, também graças a ele, estamos mais perto de ver a UFRGS
democratizada através das cotas raciais e sociais.


                                                                                                       
PÁTRIA LIVRE!
               
                 
                 
                 
                 
               VENCEREMOS!!

                       
                 
                 
                 
    Levante Popular da Juventude

 

Cópia integral da mensagem enviada aos
Conselheiros da UFRGS:

"Cara
conselheira, somos do Levante Popular da Juventude, organização onde se articulam
os jovens de diversos movimentos populares (como o Movimento dos Desempregados-
MTD,  Pastorais de Juventude, Catadores, MST, Resistência Popular,
Pequenos Agricultores- MPA, Atingidos por Barragens-MAB, Via Campesina, etc).

Queremos debater com você sobre a aprovação das Cotas na UFRGS no dia 29 de
junho. Nos colocamos a inteira disposição para dialogar com você sobre a
proposta, de forma a dirimir todas as tuas dúvidas para que possas votar a
favor da proposta da Comissão Especial com muita tranquilidade. Sabemos seu
nome e onde você trabalha. Por isso, podemos acompanhá-lo como for necessário.

Se
desejar, podemos fazer uma conversa pessoalmente, ou trocarmos questões por
e-mail mesmo. Apenas insistimos que, no que depender de nós, não evitaremos
esforço algum no sentido de dirimir todas as tuas dúvidas sobre a proposta de
cotas.

Não
falaremos demais aqui. Ficaremos no aguardo de sua resposta sobre se já tem
alguma posição definida, se tem dúvidas ou temas que ainda gostaria de
aprofundar. Por hora, apenas gostaríamos de dizer que:

1.
Todos reconhecemos que a UFRGS, como uma universidade federal,  hoje não
reflete a sociedade brasileira. 80% dos alunos brasileiros estudam em escolas
públicas, mas há cursos na UFRGS como medicina, direito, odontologia,
engenharia da computação, psicologia, biomedicina, nutrição, etc, em que menos
de 1% dos alunos provém de escolas públicas. Por outro lado, 48% da população
brasileira é negra, mas menos de 2% dos estudantes da UFRGS o são. Não há
nenhum estudante indígena em toda a universidade.

2.
Isso mostra a necessidade de Ações Afirmativas urgentes para mudar este quadro.
Mas não precisamos inventar a roda para achar as soluções. O movimento
anti-racismo no Brasil já estuda sobre isso há mais de 30 anos e já apontou as
melhores soluções que já se encontrou até hoje: políticas públicas de combate
às raízes do racismo (como o estudo da história da África e dos negros no
Brasil que finalmente foi aprovada em 2005), políticas de combate a pobreza
(visto que 83% dos pobres do Brasil são negros) mas, como medida emergencial
COTAS para negros e indígenas aonde quer que estas populações estejam,
recorrentemente, subrepresentadas. As cotas não são políticas novas. Foram
usadas para combater desigualdades de gênero (como para mulheres em disputas
eleitorais) e para portadores de necessidades especiais, entre outros. As cotas
não são favor nem empurrarão para dentro da universidade pessoas incapazes.
Quem necessita de cotas é a própria universidade, que tem um número tão ínfimo
de vagas para sua demanda e um critério de definição dos aprovados tão
questionável, que necessita definir para si uma cota de determinads populações
que passarão a compô-la, desde que qualificadas, as quais, sem tais cotas,
permanecerão fora da universidade. As cotas servirão para a própria
universidade medir seu grau de inclusão social e ir ampliando sua diversidade
interna de forma qualificada.

Por
tudo isso, nós do Levante da Juventude, que há 3 anos atrás eramos contra
cotas, hoje exigimos Cotas Raciais e Sociais na UFRGS, já. Nós fomos atrás de
informações, estudos, e aprendemos muito. E, não a toa, defendemos na Comissão
Especial uma proposta de Cotas de 60%. Sendo 40% sociais (medido por renda,
como na UERGS) e 20% raciais. Mas na negociação com a Comissão Especial eleita
pelo CONSUN fomos recuando na negociação até chegarmos ao limite de 20%+20%
(sendo sociais por escola pública e não renda) em 2010, 15%+15% em 2009 e
10%+10% em 2008. Por isso, não aceitaremos menos do que isso. Muita injustiça
ainda permanecerá dessa forma, mas já será um avanço para a universidade ao
menos esta proposta. Uma negativa neste sentido seria uma reafirmação de que a
UFRGS deseja permanecer sendo a universidade mais segregada do país que ocupa,
simultaneamente, a piores posições nos indíces de desigualdades sociais e de
segregração racial no mundo. Por isso, não exitaremos em fazer o que for
necessário para garantir esta aprovação. Inclusive por sabermos que mais de 30
universidades já adotaram tais políticas pelo Brasil a fora e apenas ganharam
com isto.

A
UFRGS não pode alienar-se destas informações e agir como um avestruz. Até
porque, fora do buraco onde os Conselheiros poderiam esconder seus rostos estão
milhares de pessoas sedentas por justiça.

Reafirmamos
que ficaremos aguardando para receber sua resposta indicando sua posição neste
debate, e nossa total disposição em apresentar, detalhada e gentilmente as
justificativas que nos levam a apoiar proposta da Comissão Especial.

                 
Atenciosamente,
                 
Levante Popular da Juventude.
                            

                               
          18 de setembro de 2007"


Resposta integral da conselheira do
Consun Roseli Pereira a nosso email:

Sou
conselheira e sou a favor das quotas, tanto que meu Suplente, o Edilson, está
participando da Comissão Especial e faz a defesa e a votação – dou meu lugar a
ele.

Admiro
muito esse grupo Levante e, com certeza, ainda vou fazer um trabalho envolvendo
o movimento de vocês!!!

Roseli

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Sobre cotas e sociedade

Por Paulo MüllerBacharel em Ciências Sociais pela UFRGS e mestrando em Antropologia Social pela UNICAMP

Há dois anos atrás, um amigo, proveniente da Guiné-Bissau, negro, aluno
intercambista de uma universidade gaúcha contou-me que sofrer "atraques" da
polícia é algo comum em sua vida. Mas destaco uma situação específica que
narrou. Em um desses atraques, após revistar e conferir a documentação do
suspeito, o policial o liberou e desculpou-se por não saber que ele era
estrangeiro, e que estudava na universidade. Dentre todas as possibilidades de
identificação do sujeito, porque o policial não partiu da categoria
"estrangeiro" ou "estudante", que foi o que o salvou?

Cotas raciais e sociais devem ser implementadas na UFRGS e em outras
universidades e instituições também, mas não somente, como forma de reparação do
preconceito racial e de classe. A implementação das cotas deve ser pensada como
ato único de explicitação do preconceito, independente de sua adjetivação.
Entretanto, é possível apontar certas confusões entre estas formas de
preconceito difundidas na sociedade brasileira. Em primeiro lugar, deve-se
perguntar por que a população negra tem um percentual maior de sujeitos em
situação de miséria do que a população branca. Em segundo lugar, deve-se
perguntar por que a população negra pobre é classificada como negra e pobre e
os brancos pobres são classificados como brancos que também são pobres.
Terceiro, deve-se perguntar por que outras mobilizações políticas são
classificadas como mobilizações políticas e a mobilização política pelas cotas
é classificada como mobilização política dos negros.
 

Certamente muitos outros questionamentos são possíveis. E o fato de que
"negro" é uma categoria marcada na sociedade brasileira não é nenhuma novidade.
A novidade é que a atualização disto se mostra na luta anti-cotas. Pessoas
aderem a determinadas "causas" sociais por se identificarem com estas em meio a
muitas outras identificações possíveis, sem dúvida acompanhadas e motivadas
pelo interesse de se beneficiar das conquistas do movimento. Se a identificação
é livre, então por que a causa do negro, que se organizou e lutou por isso,
deve ser solapada pela causa do pobre? De qualquer forma, não temos aí a
resolução dos problemas brasileiros, mas a possibilidade de contemplação de uma
gama altamente considerável de sujeitos impossibilitados, até o momento, de
cursarem faculdade devido ao seu histórico enquadramento em papéis subordinados
dentro da sociedade brasileira.

A inclusão da discussão sobre cotas na agenda política em diversos
níveis – estatal, governamental, institucional – pode ser encarada como uma
vitória porque reverte essa tendência de hierarquização e despriorização da
questão racial. Por outro lado, não há indicadores de vitória sobre o
preconceito decorrente da própria hierarquização de papéis. O que se abre é a
possibilidade de interrupção da reprodução da distribuição desigual desses
papéis segundo critérios racialistas. Tornar o preconceito visível não é
criá-lo, e tampouco combatê-lo. A implementação de cotas de vagas para negros
(pobres e ricos) e pobres (negros e brancos) na UFRGS deve ser pensada pelo
CONSUN como um processo de aumento da autonomia universitária na medida em que
aumenta a diversidade de visões e experiências sociais que a compõem,
democratizando não somente o acesso ao banco da universidade, mas também à
excelência que o consagra.

Posted in Na Raça | Comments Off on Sobre cotas e sociedade

Mérito e cotas: dois lados da mesma moeda

Por André Marenco – Doutor em Ciência Política e Professor do Departamento de Política IFCH/UFRGS.

Os argumentos de críticos e defensores de políticas afirmativas
convergem em um ponto: para ambos, haveria uma oposição entre a
instituição da meritocracia como regra para recrutamento acadêmico e a
implantação de mecanismos compensatórios, sociais ou raciais.
Adversários das cotas, retomando uma espécie de retórica da ameaça
(Hirschman, 1992) afirmam que sua adoção eliminaria o mérito e o
conhecimento prévio, premiando os menos capazes, com efeitos agregados
sob a forma de mediocrização universitária. Defensores das cotas
subestimam o significado racionalizador de
instituições  meritocráticas, resumindo a discussão com o argumento de
que fins socialmente justos justificam a adoção dos meios necessários
para atingi-los.

O equívoco de ambos consiste em não perceber a coerência
existente entre meritocracia e a adoção de uma regra de cotas como
procedimento para a ocupação de vagas universitárias. Em suas origens,
meritocracia surge como alternativa ao status herdado pelo nascimento
como critério para  ocupação de postos públicos. Trata-se de substituir
ascription por achievement, premiando a capacidade individual  e não o
berço na configuração da hierarquia social. A ironia é que vantagens
adscritivas foram capazes de adaptar-se às novas regras impostas pela
individualização das sociedades modernas, reconvertendo capital
econômico e social familiar, em capital escolar (Bourdieu, 1989,
Boltanski, 1982). Investindo, desde o ensino fundamental, na formação
escolar de seus herdeiros, famílias  bem providas asseguram  sua
continuidade no interior das instituições universitárias de maior
prestígio e qualidade, que oferecem títulos e diplomas mais valorizados
no mercado, reproduzindo hierarquias plutocráticas dissimuladas em
capacidade intelectual individual.

A conversão de exames vestibulares em simulacros de mérito
individual não deve induzir-nos ao desprezo pela relevância de regras
meritocráticas, como condição para o estabelecimento de instituições
racionais e impessoais. Trata-se de controlar as distorsões provocadas
pela origem social, neutralizando o efeito path-dependent
berço=diploma=renda.

John Rawls, o maior expoente do liberalismo político do
século XX, ao apresentar sua concepção de justiça como eqüidade,
ressalta que as desigualdades sociais e econômicas para serem
aceitáveis, devem satisfazer duas condições: estar ligadas a posições
abertas a todos, segundo condições de igualdade de oportunidades, e,
beneficiar aos membros menos favorecidos da sociedade (Rawls, 1971).
Quem quer ser liberal, que ao menos seja coerente, e honre o
significado desta consigna.

Meritocracia constitui um sistema distributivo, que confere de
modo desigual vagas e títulos universitários, premiando a capacidade,
responsabilidade e talento individuais. Para que seja justo, é preciso
que esteja baseado em uma efetiva igualdade de oportunidades, julgando
apenas o esforço e competência individual, e não o sobrenome (o que,
parece óbvio, não constitui mérito próprio). Desta forma, instituir um
sistema de cotas é a alternativa eficaz e racional para assegurar um
indispensável critério meritocrático, como procedimento para o
recrutamento aos bancos universitários.

A probabilidade de um branco ingressar na universidade é,
no Brasil, 137 vezes superior a de um negro. O percentual de negros com
diploma universitário hoje no Brasil equivale ao dos Estados Unidos dos
anos 40, quando leis segregacionistas estaduais impediam negros de
frequentar, como alunos, universidades para brancos. Equivale ao
percentual de negros com diploma na África do Sul, durante o apartheid
(PNUD, 2005). Frente a estes números, questionar se existe racismo ou
se a implantação de cotas raciais poderiam introduzir o racismo no
Brasil, é um modo de tergiversar sobre o problema. Na ausência de
oportunidades e de mobilidade social reais, conflitos raciais estão
presentes da pior forma possível, traduzidos nos indicadores de
violência e criminalidade, enquanto nossa classe média vive seu Baile
da Ilha Fiscal, falando em harmonia racial  e talento individual.

Políticas afirmativas devem oferecer oportunidades de
mobilidade social inter-geracional, projetando as condições para a
constituição de uma ampla classe média negra, que incremente uma
economia de mercado no Brasil. Trata-se de ir além da hipocrisia de
falar em cursos técnicos e profissionalizantes para jovens pobres e
negros, como se fosse suficiente oferecer a estes a auspiciosa
perspectiva de serem, no futuro, balconistas, garçons ou
recepcionistas. Teremos harmonia racial quando for corriqueiro
consultar-nos com médicos negros, sermos julgados por magistrados
negros, dirigidos por executivos negros e ensinados por professores
negros. Mas, talvez, seja isso precisamente que amedronta nossa classe
média.

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Se raças não existem, é inegável que insistem!

 
Carta aberta do pofessor José Carlos dos Anjos – Dr. em Antropologia e Professor do Departamento de Sociologia IFCH/UFRGS – aos docentes contrários as políticas de ações afirmativas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Dizem especialistas que fazendo um cruzamento sistemático entre a pertença racial e os indicadores econômicos de renda, emprego, escolaridade, classe social, idade, situação familiar e região ao longo de mais de 70 anos, desde 1929, chega-se à conclusão de que no Brasil, a condição racial constitui um fator de privilégio para brancos e de exclusão e desvantagem para os não-brancos. Do total dos universitários, 97% são brancos, sobre 2% de negros e 1% de descendentes de orientais. Sobre 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles são negros. Sobre 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles são negros.

O carnaval se aproxima. Nossos sentidos estão adequados a uma partição de fenótipos por espaços sociais. Lemos rostos todos os dias, em cada lugar, como lemos nossos livros e desconfiamos de algumas proposições. Se sairmos de uma sala de aulas da UFRGS numa sexta à noite para irmos a uma quadra de escola de samba, nossa ontologia racial se impõe numa evidência: um fracionamento de espaços sociais por raças como se o território da universidade fosse dos brancos (daí meu mal estar cotidiano) e a quadra pertencesse aos negros (como reclama com sustentável dignidade, o passista). É evidente que são poucos negros em uma sala de aula da UFRGS para muito poucos brancos na escola de samba.

Apenas a CONEN – Coordenação Nacional de Entidades Negras – agrega mais de trezentas entidades do movimento negro, Unegro e MNU são outras entidades nacionais com agremiações em quase todos os Estados brasileiros; qualquer um que tenha participado de reuniões iniciais de entidades do Movimento Negro sabe que o rito de iniciação no engajamento militante  passa por cerimônias dolorosas  de explicitação espontânea de vivências da condição de vítima de racismo; entre os não militantes é crescente o número de depoimentos em agências como o SOS – Racismo, sem contar as delegacias nada preparadas para receber e muito menos contabilizar as denúncias de racismo. Mas a evidência insiste que essa partição espacial e essas denúncias evidenciam um racismo insistente e persistente: não basta a história, não bastam os números, não bastam os depoimentos dos negros, não basta a nossa sensibilidade de qualquer dia desses (passe por lá e saiba do que estamos falando!)?

Que a não existência do racismo possa ser decidida, apesar dos depoimentos dos negros (e brancos), apesar dos números das estatísticas, isso surpreende! O que surpreende é a pergunta sobre esse lugar privilegiado de acesso ao real, essa arrogância epistêmica, esse protocolo que vence objetividades (tão desconstruíveis) e subjetividades (tão passiveis de serem relativizadas).

Meu caro divino, mas de onde você está falando, cara-pálida? Que lugar inacessível é esse que te permite definir os objetos de meu mundo apesar de mim, os objetos do teu mundo apesar das tuas estatísticas? Como decides sem mim as fronteiras entre mim e ti, quando elas existem e quando não existem? O que te permite partir e repartir o mundo em crenças paranóicas e racistas de um conjunto de movimentos sociais negros e a verdade subjetiva de todo o resto supostamente não racializado? Apenas o olhar arrogante da tua bela ciência? O que te permite definir quando o que o “nativo” diz deve ser levado em conta e, sobretudo, quem é o “nativo” que merece teu crédito? Esse lugar de enunciação que supõe acesso tão privilegiado ao real, que vos permite dizer que não existe o racismo que sobre meu corpo insiste, não é o sinal mais flagrante de vossa branquitude? 

– se você disser que possui protocolos científicos muito mais razoáveis do que as dores que me colam à pele e reinventam a cada dia meu confinamento negro, te direi que é exatamente disso que estou falando: que queremos também um lugar sob esse sol que vos permite dizer coisas tão razoáveis (porque suspeito que continue a não ver as mesmas coisas que você vê, porque viemos de historicidades diferentes e nossas ontologias precisam ser negociadas para que encontremos mundos comuns). É essa necessária diplomacia que reclama presenças negras mais numerosas na universidade. E você pode não estar certo sobre a inexistência do racismo!

Diz, displicentemente, um dos maiores antropólogos brasileiros da atualidade que “já há coisas demais no mundo que não existem” para que o antropólogo continue se dando ao luxo do inventário das inexistências! Na disciplina, esse já displicente senso do (mal) estar entre ontologias variáveis não tem sido compartilhado como uma ética do cuidado com as existências, essas delicadas criaturas. Muitos de nossos colegas insistem em arbitrar sobre o que existe e o que não existe desgraçadamente – apesar das dores de “seus nativos”.

Está nos fundamentos dessa disciplina particularmente preparada para lidar com a alteridade que é a antropologia, a suspeita sistemática de que os objetos insistentes no mundo prévio do pesquisador possam não ser tudo o que existe. E que as dores, convicções e cosmologias dos outros também se referem a coisas que de fato existem e que talvez estejam além das ontologias “razoáveis” do pesquisador. Isso faz a felicidade da crítica sistemática ao etnocentrismo e institui a própria noção de alteridade que baliza a disciplina. Tem sido surpreendente a ausência dessa humildade disciplinar na voz de diversos cientistas sociais brasileiros quando lidam com a questão racial. Não seria básico perguntar antes de decretar a inexistência: “o que é o racismo que eles dizem que sofrem?”; “O que significa para eles o racismo?”; “Quanto e como consigo traduzir esse afeto (modo de afetar o mundo e de ser afetado nele)?”

Que o racismo não exista, isso só não surpreende numa ligeireza jurídica que esvazia o conteúdo sociológico de uma relação de desumanização na desgraçada formalidade da busca de evidência de interdição/proibição: Se você chama o sujeito de negro sujo você o ofendeu, mas não interditou nada, portanto trata-se de ofensa e não de racismo! Que esse negro nunca mais tenha condições subjetivas de voltar ao lugar do insulto, isso não é um problema do jurista! Mas nós? Vamos nos ater a temporalidades tão confinadas, tão decepadas dos encadeamentos históricos mais substantivos?

Se raças de fato não existem, pelo menos no Brasil insistem! Insistem nos números, insistem nos depoimentos negros, assim como está presente nas vossas mais humanistas declarações de intenções a respeito de cotas na universidade.

Raça é algo que a modernidade não pára de fazer inexistir, seja através dos atuais processos de controle de fluxos mundiais de populações, ou no antigo projeto nazista de extermínio daquilo que seus ideólogos inventaram como a mais radical alteridade do povo alemão, ou através do processo de censura sobre o termo raça e ainda nas múltiplas formulações humanistas condenando o racismo… De todo o modo, a gestão da inexistência insistente de raça é um dos problemas cosmopolíticos dos modernos: como repartir as coisas e pessoas  que existem de modo que raças não existam convincentemente? É disso que as nossas estatísticas falam: as coisas que existem e que valem a pena (que são capitais, recursos para outras coisas, passaporte para outros caminhos) não estão suficientemente bem repartidas para que raças tanto não existam como não insistam. 

Um de nossos problemas modernos é exatamente o da infinitude desse processo de fazer inexistir raças, a demorada implausibilidade de tornar convincente essa inexistência quando todas as demais partições de nossos espaços sociais parecem deixar flagrante a ausência da inexistência de raças.

Porque tanta insistência em demonstrar o que não existe, senão porque raça insiste em ser um problema histórico não passível de ser contornável apenas discursivamente?  É da existência histórica dessa insistência, da existência dessas múltiplas políticas para fazer inexistir, que estamos falando. O que está subjacente a tanta insistência? Um geneticista talvez possa deliberar sobre a existência de raças do ponto de vista biológico, mas não pode decidir sobre nossas ansiedades para que se pare em falar em raças, sobre como produzir políticas de desracialização das mentalidades e dos dispositivos objetivos de produção de repartições de populações nos espaços sociais. Esse é o nosso problema histórico, social, nem minimamente genético.

O que está em jogo é que a polícia me reconhece como negro sem me pedir a carteira genética; que os meus colegas, francamente, imediatamente me reconhecem como negro sem um teste de DNA, apesar de cientistas e de sua maldita hermenêutica da dúvida sistemática; meus alunos até desconfiam que meu excesso de melanina possa carregar junto outros excessos e, sobretudo muitas deficiências… É do peso histórico do efeito agregado de milhares de reconhecimentos cotidianos ligeiros e insustentáveis como esses que estamos falando. Trata-se de falar de raça do prisma sociológico e enquanto efeito histórico de dispositivos objetivos e de disposições subjetivas para repartir e definir o lugar das pessoas tendo como uma das bases de impressão (é preciso lembrar Goffman e a política da primeira impressão na estruturação das interações cotidianas?): o fenótipo. O “lugar de negro”, esse princípio de partição que muitos de nós gostaríamos de banir, se faz evidente porque existe esse substrato material causador de impressões marcantes em disposições subjetivas preparadas para racializar.

O anti-racismo ligeiro não percebe que a inexistência de raças não se faz por um passe de mágica de uma enunciação científica. Não é porque cientistas dizem que raças não existem que elas passam a não existir socialmente. Historicamente a não existência de raças precisa ser praticada, inventada, imaginada em dispositivos institucionais concretos, tornada presença visível de negros na ossatura institucional da nação até que se naturalize tal presença. Se a presença de negros, nos espaços mais caros da nação não for tão visível a ponto de se tornar natural, estaremos condenados a ter a presença visível da insistência de raça.

É por isso que o problema das modalidades de inserção positiva e visível do negro brasileiro na ossatura institucional da nação em nada reclama os palpites políticos de cientistas da genética. Políticas relacionadas a patrimônio genético merecem bem uma atenção decisiva desses profissionais. Quanto a políticas afirmativas a favor de negros e indígenas, cabe perguntar a cada um dos partícipes da assembléia de quem sua sensibilidade especial lhe faz porta-voz:  Dos negros, dos indígenas, dos brancos, de mestiços, da bandeira nacional, da mulata ardente, etc.? Essas entidades de fato não existem nos minúsculos mundos científicos dos geneticistas! Estes deveriam defender políticas de genes como cientistas e palpitar sobre raças do ponto de vista político como qualquer outra voz cidadã. Não deixa de surpreender, nesse surpreendente Brasil, que geneticistas tenham se tornado experts abalizados, consultáveis em políticas públicas referentes a dimensões históricas gigantescas e macroscópicas da nação brasileira. Para tanta pretensão deveriam agregar ao menos duas especialidades!

Esquecem-se, por vezes, alguns “cientistas” que a temporalidade das ciências não é a mesma das demais dimensões das mentalidades de nossa época. Que a mentalidade racista vem sendo praticada no Brasil há cinco séculos enquanto que as descobertas da genética sobre a inutilidade da categoria raça é algo bem mais recente, deveria ser trivial! Sobretudo, que a penetração na vida social das descobertas das ciências obedece a ritmos e está sujeita a reinterpretações imponderáveis, tardias e desconcertantes, também a essa altura deve ser trivial. Mas o problema dessas trivialidades é que são inconseqüentes para esse ligeiro pensamento anti-racista que, como diria o velho e bom hoje inominável, “confunde as coisas da lógica com a lógica das coisas”.

Então cabe repetir: para o bem e para o mal, só uma ínfima parcela dos brasileiros são cientistas. Não apenas muitos poucos detêm os rudimentos dos conhecimentos dos geneticistas, mas, mais ainda, nós os cientistas sociais precisamos lidar não apenas com o que existe de fato para os biólogos, mas também com os efeitos globais das práticas associadas ao que os demais brasileiros acreditam que existe. É disso que estamos falando, do efeito global de raça que muitos brasileiros de muitas maneiras diferentes praticam como “existências”.

E do que alguns “intelectuais” estão falando quando dizem que políticas afirmativas de corte racial são políticas perigosas? Do que mesmo eles têm medo? Qual é o tabu que faz com que não se explicite com a mesma insistência da declaração profética qual é o perigo real e quais os seus contornos? De onde viria o perigo? Quem seria o agressor? Que disposições subjetivas estariam por trás dessa onda devastadora do nosso sublime humanismo não-racista?

Será que eles temem que a nossa generosa cordialidade racial não resista ao teste de uma equiparação da presença de negros e brancos na universidade? Será que esse patrimônio da nação que é o mito da democracia racial não serve sequer para sustentar uma nova disposição moral que exige e desafia que negros estejam tão imediatamente quanto possível convivendo com brancos em número razoável em nosso campus? Será que eles acham que brancos não conseguem conviver com indígenas a não ser na relação pesquisador-objeto? Mas então para que “raios” serve esse tal de mito da democracia racial que tanto insistem que preservemos? Porque acreditar em cordialidade racial se isso não é de forma alguma assimilável a idéia de enfrentamento solidário de um problema de desigualdade que deixa visível a ausência de negros nos campus? Será que temem que suas quimeras estejam se arruinando ao primeiro teste? É o espectro do incêndio racista na casa de estudantes da UNB que consome suas veleidades da ausência brasileira de percepção racializada de mundo?  

Se fosse apenas isso, precisaríamos nós, tão progressistas, de outras razões para desafiar disposições subjetivas tão hipócritas, mesquinhas e iníquas?

O pior é que talvez eles não concordem comigo sobre o caráter injusto de uma resposta violenta a política de cotas!  No fundo, esses intelectuais ultra-humanistas talvez concordem que esse ódio-racial-branco-nascente estaria justificado pela injustiça da “entrada não meritocrática de negros”! Talvez eles temam o potencial ainda não testado de seus próprios ódios raciais. Eles, tão humanistas!

Se assim for, viva a ligeira cordialidade racial!  Ela não sobrevive ao menor teste, mas sustenta nossos desencontrados sorrisos de corredor.

Já agora se deveria notar, antes que nos exijam uma comparação culturalmente exacerbada entre os EUA (da gota de sangue) e o Brasil (do branqueamento como fórmula de dissolução do racismo), que os diversos grupos racializados e estigmatizados por conta da noção de raça não carregam as mesmas historicidades. As fórmulas de equacionamento de suas dores e memórias de sofrimentos não são transferíveis esquematicamente. Será necessário recordar que, no Brasil, os judeus vêm passando, desde “o início da nação”, por um processo inacabado de branqueamento prenhe de dores? E que passar a ser reconhecido como branco não é igual a se desracializar? E que mesmo se fosse, as diferenças históricas e de substratos ontológicos impedem soluções similares para negros e judeus? Que gerações de negros vêm ensaiando o branqueamento sem que o quadro geral deixe de ser trágico, porque a branquitude é uma ideologia que carrega intrinsecamente uma noção de pureza que acusa todo o processo de purificação denunciável?

Para nós, os negros, a nova tragédia deriva do fato de que os donos de nossas ontologias passaram a decretar que o racismo, que sobre nós insiste, na verdade não existe!

Isso torna muito mais trágico o já agora “nosso” racismo, que deixou de ser  denunciável. Não se trata de uma operação intelectual nova, mas a escola paulista (Florestan, Bastide, Iani…) que respondeu a demanda da Unesco sobre a harmonia racial brasileira já nos havia aliviado em parte do fardo dessa inexistência.

Se já é difícil conviver com um racismo efetivamente existente, como imaginam o fato da inexistência do racismo que me fere em cada detalhe do cotidiano?  Se já era difícil o racismo real, agora, vivemos, nós os negros, o trágico do racismo inexistente como um bando de paranóicos racistas? O problema cosmopolítico é que esse é um bando grande demais para uma mania passível de ser resolvida numa instituição psiquiátrica que já não seja um outro mundo!

José Carlos dos Anjos

Dr. em Antropologia e Professor do Departamento de Sociologia

IFCH – UFRGS

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Irmãos pré-vestibulandos foram confundidos com assaltantes quando corriam

Publicado no website Boletim Informativo/Políticas de Cor em 19/01/2005

Confusão e racismo levaram dois candidatos ao vestibular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a perder a prova de ontem, na Capital. Dois jovens negros, que são irmãos, foram confundidos com bandidos pela Brigada Militar por estarem correndo, atrasados para o concurso. William Flores Silveira, 17 anos, e Cristian Norberto Flores Silveira, 24 anos, prestavam vestibular para Engenharia Mecânica – curso que o mais velho já está fazendo na Unisinos.

Moradores de Alvorada, ontem pela manhã, ambos seguiram de ônibus para a Capital, onde fariam a prova na Escola Estadual Professora Leopolda Barnewitz, na Rua João Alfredo, bairro Cidade Baixa. Ao desembarcarem na Avenida Loureiro da Silva, a cerca de duas quadras do local da prova, perceberam que já eram 8h15min e decidiram correr – a prova se iniciava às 8h30min. Os irmãos levariam cerca de cinco minutos correndo para chegar à escola. A menos de 10 metros do portão do colégio, foram abordados por dois PMs em uma viatura, e por um terceiro policial, a pé. – Eles (os PMs) vieram de arma em punho e perguntaram por que a gente estava correndo.

Quando falamos que íamos fazer o vestibular, eles disseram que "muita gente fala isso e, na verdade, tá assaltando os vestibulandos" – relatou Cristian. Portão foi fechado, impedindo o ingresso Depois do mal-entendido, quando os garotos conseguiram chegar ao colégio, o portão já estava sendo fechado. Houve uma tentativa de argumentação, mas já passava das 8h30min, e eles não puderam entrar.

O pai dos garotos registrou ocorrência na Delegacia de Polícia Para a Criança e o Adolescente Vítima, argumentando que a arma foi apontada para o adolescente. Hoje, ele deve procurar a Corregedoria da BM. – Vou tentar alguma medida para que os garotos não percam o vestibular por algo que não foi culpa deles – lamentou o engenheiro Norberto Silveira, pai dos jovens.

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Haiti

Haiti


Gilberto Gil & Caetano Veloso

Quando você for
convidado pra subir
no adro da Fundação Casa de Jorge Amado
Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos
E outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados

E não importa se olhos do mundo inteiro possam estar
por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque
com a pureza de meninos uniformizados
De escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada
Nem o traço do sobrado, nem a lente do Fantástico
Nem o disco de Paul Simon
Ninguém
Ninguém é cidadão
Se você for ver a festa do Pelô
E se você não for
Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui

O Haiti não é aqui

E na TV se você
vir um deputado em pânico
Mal dissimulado
Diante de qualquer, mas qualquer mesmo
Qualquer qualquer Plano de educação
Que pareça fácil
Que pareça fácil e rápido
E vá representar uma ameaça de democratização

do ensino de primeiro grau
E se esse mesmo deputado defender a adoção da pena capital
E o venerável cardeal disser que vê tanto espírito
no feto
E nenhum no marginal
E se, ao furar o sinal, o velho sinal vermelho habitual
Notar um homem mijando na esquina da rua
sobre um saco brilhante de lixo do Leblon
E quando ouvir o silêncio sorridente de São Paulo
diante da chacina 111 presos indefesos
Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio
a Cuba Pense no Haiti
Reze pelo Haiti

O Haiti é aqui

O Haiti não é aqui

http://www.youtube.com/watch?v=ebd9dMHs6iA

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Grupo é preso com cartaz racista anticotas em São Paulo

André (em pé), do grupo White Power  “Não morreram seis milhões de judeus, não existiram câmaras de gás e nem Hitler foi um assassino”  Fonte: ISTOÉ 08/12/1999 : 

Originalmente publicado no website da Folha de São Paulo em 24/10/2006

Três homens foram flagrados com o material na Vila Mariana (SP); polícia os indiciou sob a acusação de crime de racismo. Eles estavam com o material do grupo White Power SP, que prega o racismo e a intolerância contra negros, judeus, nordestinos e gays.

Três homens foram presos na madrugada de ontem colando panfletos racistas com críticas ao programa de cotas de vagas para afrodescendentes nas universidades públicas. O grupo foi flagrado com o material nas imediações da Vila Mariana, zona sul de São Paulo, próximo a uma universidade.

Os três foram indiciados sob a acusação de crime de racismo -incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, religião, etnia ou procedência nacional. O crime é inafiançável e a pena é de 1 a 3 anos de prisão.

Os cartazes, que foram impressos do site do grupo White Power (Poder Branco) São Paulo, diziam: "Vestibulando branco. Hoje eles roubam sua vaga nas universidades públicas. E chamam isso de direitos iguais. Se você não agir agora, quem nos garante que eles não roubarão vagas nos concursos públicos? Devemos assegurar a existência de nossa raça e futuro de nossas crianças brancas". Também simula uma prova de vestibular feita por um negro com respostas com erros grosseiros e o carimbo de "aprovado".

O White Power São Paulo, que é investigado pelo Ministério Público desde 2004, se diz "nacional-socialista", prega a valorização da raça branca, a intolerância contra negros, judeus, nordestinos, imigrantes ilegais e homossexuais.

Os presos são: o autônomo Rogerio Costa Andrade, 27, o designer Eduardo Brandão Jarussi, 26, e o vendedor Emerson de Almeida Chieri, 34. À polícia, eles disseram que não são racistas. À Folha, disseram que têm o direito de expressar sua opinião (leia texto ao lado).

"O White Power é nazi-racista e está se organizando. Já foi denunciado por panfletagem pregando ódio contra negros e judeus no ABC há três meses", afirmou ontem Dojival Vieira dos Santos, da Afropress -Agência Afroétnica de Notícias. Segundo ele, o White Power se considera mais "ideológico do que os Skinheads [Cabeças Raspadas]", conhecidos pelas ações violentas.

Lições de racismo

A página do White Power SP na internet contém diversos artigos que enaltecem o nazismo. Ensina até "como divulgar a propaganda pró-branco", dá dicas de como colar os panfletos e até recomenda que os mesmos sejam afixados, entre 23h e 4h.

Segundo a polícia, os acusados, que são todos brancos, foram presos por volta da 0h35 de ontem. Dois têm a cabeça raspada: Andrade, que segundo a polícia possui tatuagens do grupo White Power e Skinhead, do qual teria sido membro atuante, e o designer Jarussi.

Já o vendedor Almeida Chieri, também indicado, já teve passagens na polícia por roubo, furto e posse de droga. "Não sabia que os cartazes tinham esse conteúdo. Pensei que se tratavam só de críticas as cotas para negros", disse ele à polícia. Chieri ainda alegou que tem dois filhos afrodescendentes com sua ex-mulher. Os três foram transferidos para o CDP (Centro de Detenção Provisória) Independência, na capital.

Eles já teriam afixado 20 dos 261 cartazes de cunho racista quando foram surpreendidos pela PM na esquina das avenidas Lins de Vasconcelos com a professor Noe Azevedo, nas proximidades da faculdade Unip e Metrô Vila Mariana.

Caso fique provado que os três ainda são responsáveis pela autoria do conteúdo dos cartazes, a pena pode aumentar para de 2 a 5 anos. Segundo a versão da polícia, Chieri estava com um soco inglês e um cartaz. Andrade segurava um tubo de cola e um rolo para pintar. Jarussi ficou dentro de um carro com cartazes.

O delegado-assistente Rui Diogo da Silva, do 36º DP, do Paraíso, onde foi feita a ocorrência, investiga a possibilidade de mais pessoas estarem envolvidas com os três acusados.

"Eles são contra a cota para negros e não se dizem racistas, mas a conduta prova o contrário. Menospreza a capacidade intelectual da raça negra", disse o delegado, que é afrodescendente e contrário às cotas raciais. "Acho que as cotas devem ser para alunos das escolas públicas, brancos ou negros."

Presos dizem ter direito a expor opinião

Os três homens presos com os panfletos de cunho racista negaram, em depoimento à polícia, serem racistas. Um deles, o designer Eduardo Brandão Jarussi, 26, disse à Folha que foi mal interpretado por ter exposto a sua opinião sobre aquilo que pensa em relação ao sistema de cotas para negros nas universidades públicas do país. Os três indiciados ironizaram a presença dos jornalistas na delegacia de polícia e disseram ter sido agredidos por policiais. Policiais negam esta versão. Leia abaixo alguns trechos da entrevista. (KT)

FOLHA – O que vocês têm a dizer em suas defesas?

ROGERIO COSTA ANDRADE – Tudo por causa de meia dúzia de panfletos. EDUARDO BRANDÃO JARUSSI – Trezentos repórteres ai dentro por causa de meia dúzia de panfletos. Por que você não escreve aí que apanhamos? Quero a garantia que não haja mais abusos. Não permitimos que nos fotografassem… Me responda uma coisa: quantos homicídios e estupros acontecem por dia em São Paulo? E você aqui por causa de meia dúzia de panfletos…

FOLHA – Vocês são amigos?

EMERSON DE ALMEIDA CHIERI, ANDRADE E JARUSSI – Sim.

FOLHA – Vocês têm alguma ideologia?

JARUSSI – Não, não. Estava expressando a minha opinião sobre o sistema de cotas do país, ponto final. Infelizmente na democracia onde eu vivo a opinião não pode ser expressada. Acho que fui mal interpretado e acho absurdo e pesado o que está acontecendo conosco. Simplesmente eu não consigo conceber que por causa de meia dúzia de panfletos esteja tendo esse alarde.

Site levou Ministério Público Federal a investigar grupo a partir de 2004

REGIANE SOARES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O Ministério Público Federal investiga a atividade do grupo White Power na internet em vários inquéritos desde 2004. O mais recente foi aberto em julho para descobrir quem são os responsáveis pelo site.

A página está hospedada em um servidor nos EUA, e não no Brasil, o que dificulta a retirada do conteúdo do ar. Ainda não há um entendimento jurídico sobre qual legislação deve ser aplicada -americana ou brasileira- em casos como esses.

O procurador Sergio Suiama disse ontem que requisitará à polícia as informações sobre o caso registrado ontem, pois podem ser úteis na investigação do Ministério Público Federal.

Em outra investigação, o MPF quer descobrir quem do mesmo grupo fez comentários racistas no Orkut. A Justiça Federal já autorizou a quebra do sigilo dos dados de internautas suspeitos de criar as páginas, mas aguarda que a Google Inc., responsável pelo Orkut, encaminhe as informações. O Ministério Público Estadual também acompanha a investigação policial que apura a divulgação de outro cartaz com teor racista do White Power colado em pontos de ônibus de Santo André em julho. O inquérito está no Deic (crime organizado), pois envolve a divulgação do site. O White Power São Paulo não respondeu ao email da Folha para comentar o assunto até o fechamento desta edição.

"Brasil está contaminado pelo racismo", diz representante de movimento negro

FÁBIO TAKAHASHI
DA REPORTAGEM LOCAL

O coordenador da ONG Educafro (que oferece cursinho pré-vestibular a alunos de baixa renda), frei Davi Santos, afirmou que os três homens presos ontem pela polícia representam uma pequena mostra do racismo que há no Brasil.

"Eles são apenas a ponta do iceberg. A minha percepção é que o Brasil está contaminado pelo racismo", disse Santos, um dos principais líderes do movimento pró-cotas no país. Para ele, essa situação só irá mudar quando os governos federal, estaduais e municipais "ampliarem o direito para os negros, deixando o Brasil mais agradável, sem discriminação".

"O que as pessoas racistas não entendem é que as cotas são uma política transitória, que chama a atenção para a desigualdade", disse Santos.

Especificamente sobre os três homens presos pela polícia, o coordenador da Educafro disse que "é preciso tratar essas pessoas, que são doentes. Algumas palestras podem fazê-las mudar seus conceitos".

As cotas visam aumentar a presença na universidade de alunos negros do ensino médio público. Para isso, as universidades reservam vagas no vestibular para esse fim. Na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), por exemplo, a cota é de 10%. Já a USP, não adota o sistema de cotas. Segundo o Ministério da Educação, em 2005, 23 instituições o adotaram.

 

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