Pela Ampliação das Cotas

Por Juremir Machado da Silva – jornalista, escritor e professor da Pontífice Universidade Católica – Publicado no Jornal 'Correio do Povo' em 02/07/2007.
 
“Na semana passada, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul aprovou
o regime de cotas raciais. É um grande avanço. E um grande retrocesso.
O avanço é claro porque só com medidas de força como essa os negros
terão realmente acesso às universidades. O retrocesso se dá em relação
ao discurso iluminista da igualdade para todos e da anulação da raça
como critério de distinção social. Até no racismo o Brasil é um país
original. Não se proíbe um negro de fazer algo. Tudo é permitido. Só
lhe falta a oportunidade. Essa falta eterna de oportunidade se tornou a
maneira mais cômoda de manter tudo sem qualquer alteração. Não haveria
necessidade de cotas se a sociedade, por meio de seus governos,
provesse ensino básico de qualidade para todos e criasse vagas na
universidade para todos os jovens aprovados num exame de saída do
ensino médio. A França não tem cotas pelo simples fato de que não tem
vestibular.

É muito mais fácil transformar a origem do problema
em justificativa: a pobreza. Os negros não ficariam fora da
universidade por serem negros, mas por serem pobres. Esse sofisma
absolve o Brasil de crime de racismo, transfere o problema social para
os indivíduos e possibilita que nada seja feito. Os governos, por outro
lado, em vez de modificarem a estrutura injusta, jogam o problema de
volta para suas vítimas. Em lugar de resolver o problema do ensino
básico e das vagas nas universidades, sugerem que a massa se engalfinhe
e divida as vagas do jeito que der. Aí tem de ser na base da porrada.
Por exemplo, pela cor da pele. Raças não existem. É um conceito
antropológico ultrapassado. Tudo é cultural. Ninguém pensa melhor ou
corre melhor porque é branco, negro ou amarelo. Mas o preconceito
racial persiste e muda de pele para continuar.

Ensino básico de
qualidade para todos e vagas nas universidades significa redistribuição
de renda. Algo que a elite brasileira não quer nem ouvir falar. Está
bom assim. O Brasil é tão original que transformou o preconceito racial
em questão de classe social. O sujeito é excluído por ser pobre, não
por ser negro. Ora, como não se pretende eliminar a pobreza
redistribuindo renda, os pobres vão continuar pobres e os negros vão
continuar negros pobres. Salvo se meterem o pé na porta com mecanismos
como as cotas. Os inimigos das cotas defendem que o vestibular é o
regime do mérito. Bobagem. Não há mérito algum em ganhar de quem não
teve oportunidade de se preparar. O mérito só há realmente quando
resulta da disputa entre iguais, entre aqueles que tiveram chances
equivalentes de preparação. O vestibular é uma armadilha de uma
sociedade hipócrita para jogar jovens contra jovens de maneira a que a
conta a ser paga pela sociedade e pelos governos em educação seja
menor. O custo social, claro, é mais alto.

O Brasil misturou as
raças quando era “normal” separá-las. Hoje, para que fiquem realmente
juntas, vê-se obrigado a separá-las por critérios raciais ou as
universidades continuarão totalmente abertas a negros que nelas não
conseguem entrar. Somos uma das sociedades mais hipócritas do mundo.
Praticamos um racismo dissimulado, matreiro e confortável. Negro é bom
pra jogar futebol e fazer música. As cotas poderiam desaparecer num
passe de mágica. Bastaria promover uma revolução educacional em três
pontos: redistribuição de renda e investimento maciço em escolas
públicas; fim do vestibular e instauração de um exame de saída do
ensino médio, com acesso à universidade de todos os aprovados; mais
vagas nas universidades públicas e mais bolsas para estudantes carentes
em universidades privadas.

È tudo o que o Brasil branco e rico
não quer fazer. Então, o jeito é ampliar as cotas. Aqui vão algumas:
cotas de 30% para parlamentares honestos (quase 300, de um total de
513, sofrem algum tipo de processo ou de investigação no Congresso
Nacional); cotas de 10% (não convém pedir muito no começo) de
governantes eficazes e cumpridores das suas promessas de campanha;
cotas 1% (vejam que é um índice relativo, modesto) de juízes dispostos
a pôr na cadeia criminosos do topo da pirâmide; cotas de 0,5% de
parlamentares decididos a mudar a legislação para acabar com a
impunidade dos Maluf, dos Calheiros, dos Collor, dos Dirceu e outros.
Por fim, cota de um bom meio-campista no time do Inter.”
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