Cotas para “ajudar” (ou; o que fazer no caso de existirem negros?)

Por Marden Müller, estudante de filosofia. Publicado em O Ôlho-Dínamo em 28/06/2007.
 
Hoje à tarde ouvi, em um programa de rádio, a opinião de alguém, uma
moça, radialista, que se declarava contra as cotas raciais sob a
alegação de que esse não seria o melhor modo de "ajudar" os pobres.
Alinhava-se, portanto, e de maneira bem turva, com os partidários de
cotas exclusivamente sociais (e aí onde eu digo "exclusivamente" eles
de certo dizem "inclusivamente").
Essa pessoa não sabe o que se
passa no debate sobre políticas de igualdade racial. Ela não sabe, pra
começo de conversa, que ninguém precisa "ajudar" os negros, porque os
negros se defendem bem sozinhos. A proposição da política afirmativa
pró-cotas é justo o caso: os diversos militantes negros aí envolvidos
não se parecem em nada com pobres coitados à espera de uma mão amiga;
eles, ao contrário, lutam por si próprios, imagine só!
 
(Ah, então
eu entendi… Mas então, mais incrível ainda…! Quando eu iria sonhar
que um negro estivesse disposto a se declarar abertamente negro, só pra
se ajudar?)

De uma vez por todas: declarar-se negro não é um
requisito, mais ou menos extravagante, mais ou menos constrangedor
–mas um requisito, em todo caso– para entrar na fila da benesse, na
fila da caridade, na fila do privilégio! Muita confusão, pois é justo o
oposto. Declarar-se negro é o ponto da política afirmativa: "negros
existem, somos nós mesmos, e de hoje em diante eu me sento nesta
cadeira, ela naquela, ele naquela outra, etc.". São muitos e muitos
passos para adiante –para longe!– daquela porta dos fundos através da
qual costumamos permitir a passagem de certas anomalias normais, como
craques negros de futebol e músicos negros. (Lembro agora de um grande
texto do Iagê sobre a indústria da bola. Recomendo-o fortemente.)

Sugiro
que os imitemos, os militantes negros, e nos afastemos também da
perversa porta da caridade, da qual somos os porteiros; abandonemos,
pois, o papel de catequizadores inveterados e de tábuas de salvação das
minorias, dos desprivilegiados. E, em troca, passemos a levá-los a
sério, as minorias e os desprivilegiados. Não por caridade, mas porque
é a única forma de escaparmos ao constrangimento que é supor-se
caridoso, de fazer do outro um acidente de percurso (uma paisagem) que
atesta e dá fé de nossa bondade. Não conheço nada mais ridículo.

Um último recado à moça do rádio: ô menina! vai ler a Palestina!

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