Cotas: razão e sensibilidade

Arlei Sander Damo, Professor de Antropologia da UFRGS

Entre os tantos argumentos contrários às cotas creio que um
deles, ao menos, merece ser contestado: aquele que afirma serem as
cotas uma ameaça à meritocracia. A mudança que está sendo proposta e
será apreciada pelo Conselho da UFRGS altera parcialmente, e tão
somente, os critérios de aceso à universidade, destinando uma parte
minoritária das vagas aos melhores concorrentes entre os cotistas – no
máximo 20% das vagas, depois de três anos da implementação do programa
(em 2010, portanto). Não está em jogo qualquer outra alteração, de modo
que os cotistas estarão sujeitos aos mesmos critérios de avaliação dos
demais estudantes ao longo da realização dos seus cursos.
 
O vestibular, como a etimologia de "vestíbulo" sugere, é um
dispositivo visando restringir o acesso a um bem precioso: o ensino de
terceiro grau gratuito e de qualidade. Ensino "gratuito" graças ao
Estado e, portanto, aos brasileiros de todas as classes e de todas as
raças. E "de qualidade" em razão do empenho de todos os que fazem parte
da universidade, sejam favoráveis ou contrários às cotas. Além desta
função utilitária, imprescindível para adequar a escassez da oferta à
excessiva demanda por vagas, o vestibular é um concurso, como outro
qualquer, cuja disputa é estabelecida no espectro de algumas
modalidades de conhecimento. Um sujeito intelectualmente mediano, mas
bem treinado, não terá maiores problemas em passar pelo vestibular,
mesmo porque o concurso poderá ser realizado indefinidamente. A ilusão
de que se é alguém ou, o que é pior, que se é mais do que os outros,
por ter sido o 1º ou o 2º classificado nesse tipo de disputa é
amplamente disseminada no meio acadêmico. Na medida em que os aprovados
são, em geral, aqueles que se preparam estrategicamente para a disputa,
não raro desde tenra idade e com o suporte de capital econômico
familiar, o vestibular pode ser muitas coisas, menos um procedimento
justo de aferimento de mérito, desde que este termo seja entendido no
sentido amplo de sua acepção.

Não vejo, pois, razão para tanto estardalhaço. Se houvesse uma
proposta de mudar todo o sistema de avaliação da universidade,
estabelecendo privilégios para determinadas classes de alunos,
quaisquer que fossem, provavelmente eu seria contra. Mas o que está em
discussão é apenas a flexibilização do ingresso, sem nem mesmo facultar
os cotistas do concurso. Tenho razões suficientes para firmar minha
convicção de que as mudanças no vestibular, visando incluir alunos de
escola pública, negros e índios, não agridem a meritocracia. A
universidade é um centro de produção e disseminação de capital
simbólico, uma modalidade de capital que pode ser reconvertida em
outros capitais e, portanto, servir como um potente mecanismo de
propulsão social e econômica. O atual vestibular favorece os que têm
acesso à ampla rede de ensino que se estruturou no seu entorno; treina,
portanto, indivíduos para burlar, com "truques" diversos, o sacrossanto
dispositivo meritocrático. O que um vestibular com cotas faz é servir
como um catalizador para determinados segmentos de raça e de classe
social.

A propósito, meus bisavós vieram da Itália. Não foi antes de
1875, quando chegaram ao Sul do Brasil as primeiras levas de
imigrantes, nem depois de 1890, data de nascimento de um dos primeiros
descendestes. É possível, inclusive, que tenham chegado em 1888, ano em
que os escravos foram oficialmente alforriados. Coincidências à parte
(muitos descendentes de cativos lutam até os nossos dias para legalizar
suas glebas), meus bisavós foram contemplados com suas cotas de terras
pelo governo brasileiro. Eles cultivaram-nas, depois trocaram por
outras e por outras mais, espalhando descendentes por vários estados
brasileiros. Tiveram méritos nesse processo, sem dúvida, mas na origem
há uma concessão importante, não posso negar.

Sou a favor das cotas, pois os que até agora se manifestaram
contrários a elas não me convenceram de que elas serão perniciosas à
UFRGS, nem me impressionaram com conjecturas que semeiam o pânico em
relação às mudanças. Também sou pelas cotas por uma escolha política,
que como outras tantas escolhas do mesmo gênero dependem de
sensibilidade.
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