da Luz, pesquisador, educador em Alvorada/RS e mestrando em Ciência
Política na UFRGS.
vez aprovada as cotas étnico-sociais para a UFRGS, vigorando a partir
do Vestibular de 2008, é de se esperar uma guerra jurídica e a presença
de muitas contestações. De qualquer forma, o primeiro passo para a
superação de um estado conservador foi dado. Nesse sentido, aproveitamos
este espaço para sistematizar algumas questões que, em forma de mitos,
têm substanciado alguns argumentos anti-políticas afirmativas e, principalmente,
anti-cotas.
1) Enquetes em programas
televisivos e de rádio têm demonstrado que, aproximadamente 80% das
pessoas têm se posicionado contra as políticas afirmativas. Isso significa
que a maioria é, efetivamente, contra?
De jeito algum! Na hipótese
mais otimista, as enquetes televisivas ou apresentadas em programas
de rádio têm por objetivos a produção de notícia, a fabricação
da unanimidade e refletem o pensamento do(a) (tele)espectador(a). Essa
linha de raciocínio é convergente com o Controle da Opinião Pública
de Nilson Lage. E reflexões importantes sobre o tema foram escritas
por Pierre Bourdieu, em A Opinião Pública Não Existe, no qual
faz duras críticas à opinião dos(as) jornalistas, pode ser acessada
aqui:
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/12/341663.shtml.
2) A maioria dos(as)
estudantes é contrário às cotas étnico-sociais?
Esse é o segundo mito.
A resposta é negativa, pois a formulação da pergunta pressupõe rejeição
às cotas étnicas e, ao mesmo tempo, às cotas sociais. Além disso,
é preciso considerar que as discussões sobre o tema perduraram por,
aproximadamente, cinco anos. Um mecanismo que poderia ter sido viabilizado,
durante este período, é a realização de um referendo, contendo uma
ou, para obter maior precisão nos resultados, duas questões. Outra
alternativa poderia ser a realização de pesquisa de opinião, com
amostragem probabilística ou por cotas representativas de cada segmento
da Comunidade Universitária. A partir dela poderíamos ter sabido,
com maior exatidão, quais e onde estariam os focos de apoio e resistência
às cotas étnico-sociais, considerando todas as justificativas para
tal e, principalmente, ter proporcionado condições para que uma das
funções de pesquisa de opinião emergisse: o desencadear debates.
Também é preciso considerar que as discussões transcendem a Universidade,
mesmo se o referendo ou a pesquisa de opinião tivessem sido levados
a cabo. Além disso, de qualquer forma o “lado” perdedor poderia
contestar o resultados obtidos.
3) As políticas afirmativas,
especialmente as cotas étnico-sociais, são um ataque à igualdade?
Negativo. Trazemos à
baila citação de Sabrina Moehlecke (2002), tal como constante na Proposta
para Implantação de Programa de Ações Afirmativas na UFRGS:
No mesmo
ano que é promulgada a nova Constituição, que traz
em seu texto novidades como a proteção ao mercado
de trabalho da mulher, como parte dos direitos sociais,
e a reserva percentual de cargos e empregos públicos
para deficientes, o Título II . Dos Direitos e Garantias
Fundamentais, capítulo II . Dos Direitos Sociais, Artigo
7º, estabelece como direito dos trabalhadores a proteção
do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos
específicos, nos termos da lei. E o Título III . Da Organização
do Estado, capítulo VII . Da Administração Pública,
no seu Artigo 37, estabelece que a lei reservará percentual
dos cargos e empregos públicos para as pessoas
portadoras de deficiência e definirá os critérios de sua admissão.
Esse trecho é interpretado por alguns juristas como
prova da legalidade das ações afirmativas. Esse conjunto
de iniciativas, no âmbito do Poder Público, indica um parcial
reconhecimento da existência de um problema de discriminação
racial, étnica, de gênero e de restrições, em relação
aos portadores de deficiência física no país sinalizado
por meio de algumas ações. Entretanto, estas ainda
são muito circunstanciais e políticas mais substantivas
não são implementadas. (2002, p.66)
Considerando
os dados existentes, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar
de 2004, no Rio Grande do Sul a população negra foi mensurada em de
12,8% e, apenas na Região Metropolitana de Porto Alegre, foi calculada
em 14,5%. O analfabetismo da população branca é de 4,9%; da negra,
9,3 e, entre pardos/as, 10%. O analfabetismo funcional foi contabilizado
em 15,5% para brancos, 23,4% para negros e 26,9% para pardos. Os reflexos
dessas estatísticas são evidentes no mercado de trabalho: pessoas
ocupadas brancas possuem, em média, 7,9 anos de estudo e percebem,
em média, 3,5 sm; pessoas ocupadas negras possuem, em média, 6,5 anos
de estudo e percebem 2,2 sm. No entanto, sabe-se que a média pode apresentar
distorções, pois a partir dela todo mundo tende a ser bom, perfeito(a)
e maravilhoso(a). Pode-se analisar os problemas que a média no segundo
capítulo de Como Mentir com a Estatística, por Darrell Huff,
disponível em:
http://www.usuarios.unincor.br/nhtlemes/cpu/mentir.asp.
Os
dados a seguir são referentes ao Projeto Conexão de Saberes, obtidos
no primeiro semestre de 2006, e coletados obrigatoriamente entre todos(as)
que ingressaram na UFRGS. Quando questionados(as), 91,52% declarou-se
branco, 1,64% preto, 4,26% pardo, 0,82% amarelo, 0,45% indígena e 1,31%
não informou. Pretos, pardos e indígenas somam, portanto, 6,35% (n=2.677).
Sobre o tipo de estabelecimento de origem, a escola particular atingiu
maioria considerável (62,2%) e a escola pública totalizou 36,8% das
respostas. Exatamente por isso é que as cotas sociais são importantíssimas,
pois a distorção é muito grande e os resultados mostram, inequivocamente,
que a lógica do vestibular reproduz a lógica da concentração e das
desigualdades econômicas.
É
preciso considerar que o perfil dos(as) estudantes da UFRGS refletem
as profundas desigualdades, sobretudo as de origem econômica. Nos termos
de Charles Wright Mills no último capítulo d’A Elite do Poder,
trata-se de alta imoralidade, cuja aceitação passiva é característica
da sociedade de massas. Os resultados da pesquisa acima apresentada
também indiciam que pode haver correlação entre cor de pele, tipo
de estabelecimento de origem e curso em que o(a) estudante se encontra
– talvez daí a resistência pelas cotas nos cursos mais disputados,
tais como medicina, direito, administração, psicologia, e por aí
vai. Se os dados referentes aos fatores étnicos das minorias apontadas
refletem as desigualdades econômicas, é de se esperar que esses(as)
se encontram em cursos menos disputados e em relativa compatibilidade
com seu condicionamento econômico. Para saber disso com a exatidão
necessária, seria preciso obter o banco de dados original e fazer cruzamentos,
seguido de testes de qui-quadrado e regressões. Esse tipo de análise
poderia contribuir para destruir o mito de que as cotas tenderão a
beneficiar a estudantes financeiramente abastados(as) e que, ao mesmo
tempo, estudam em escolas públicas.
4) As cotas étnico-sociais
aumentarão o preconceito, sobretudo as práticas racistas?
Da mesma forma que Adam
Przeworski demonstrou, em Capitalismo e Social-Democracia, a
lição histórica de que não se faz profundas transformações a partir
do voto, é preciso considerar que as práticas racistas também não
podem ser forjadas por decreto. Nesse sentido, estamos única e exclusivamente
no terreno da cultura.
5) Ou, inversamente:
as cotas, especialmente as étnicas, representam o enfrentamento ao
racismo?
Por motivos explicitados
na questão anterior, mais uma resposta negativa. Na melhor das hipóteses,
ela pode ser positiva no sentido de que pode proporcionar, indiretamente,
a convivência e a interação entre pessoas de origens étnicas e com
trajetórias diferentes. Especificamente, trata-se de enfrentamento
ao desafio da tolerância.
6) As cotas étnico-sociais
são políticas públicas incompatíveis com o reforço do/no Ensino
Fundamental?
Negativo. As políticas
afirmativas são medidas emergenciais com o objetivo de compensar, em
curto prazo, uma geração a partir do reconhecimento de um problema.
Contudo, não desconsideram o necessário reforço do Ensino Fundamental,
focalizando principalmente a qualidade, e as políticas públicas direcionadas
à melhoria na educação tendem a apresentar resultados apenas em longo
prazo. Para o enfrentamento deste problema estrutural, talvez seja necessária
ampla reforma educacional. Ao mesmo tempo, mais mecanismos de controle
sobre o poder. Em investigação do próprio autor deste texto sobre
os principais problemas existentes em Alvorada/RS, cidade da Região
Metropolitana de Porto Alegre e com menor PIB per capita do Rio
Grande do Sul, a educação aparece como décima prioridade entre eleitores,
o que abre precedentes para que tais políticas públicas sejam mais
episódicas do que sustentáveis, nessa cidade. Daí pode-se compreender
as tentativas de sloganização, como se alguns partidos políticos
fossem proprietários da “escola cidadã”.
7) A mídia pautou
o debate sobre as cotas étnico-sociais?
A resposta é negativa.
Essa dúvida surgiu a partir de artigo de Bruno Lima Rocha, doutorando
em Ciência Política na UFRGS, e foi publicada em http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_post=63279. O argumento central é o de que existe tolerância
ao pensamento de esquerda nas instituições de Ensino Superior, mas
dificilmente a presença popular na Universidade. Porém, pode-se levar
em conta que a tentativa de pauta do tema, pela imprensa gaúcha, se
deu de maneira silenciosa. Isso tem um significado bastante claro, revelador
de uma das limitações dos estudos que relacionam mídia e política:
nem sempre essa relação pode ser feita a partir do conceito de visibilidade,
pois a maior parte das principais decisões políticas é invisível.
Além disso, havia um consenso no Conselho Universitário, relativo
à necessidade de implantação de políticas afirmativas na Universidade.
É o que pode-se depreender a partir da análise das discussões que
constam nos documentos da versão anterior à aprovada, disponíveis
em http://www.ufrgs.br/daef/Cotas.html. Nessa discussão, o voto divergente não recusa
a necessidade de ações afirmativas na Universidade. Argumenta que,
considerando os dados referentes ao Vestibular de 2006, o modelo de
cotas afetará quantitativamente o grau de disputa nos cursos mais concorridos,
especialmente a Medicina.