Claudia
Fonseca (antropóloga, professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS, Núcleo de Antropologia e Cidadania)
"Brasil não é um país racista", ouvi na televisão ontem de um professor da UFRGS se manifestando contra cotas raciais. Que alívio, penso eu.
Então o fato de brancos no Brasil viverem na média seis
anos mais do que negros deve ser conseqüência de algum problema físico
desses "outros".
Brasil "não tem segregação racial", leio numa coluna de opinião contra as cotas. Que bom. Aquela
porção (quase o dobro dos brancos) que vive amontoada nos aglomerado
subnormais deve refletir um gosto cultural pela vida simples. "Não há prova estatística impedindo a ascensão social de negros", leio de outro autor escrevendo contra cotas. Que consolo pensar que aquele grande número de negros vivendo
abaixo da linha de pobreza ( 46.8% contra 22,4% dos brancos) deve ser
porque eles simplesmente não se esforçam mais! Quanto à universidade,
já que temos o vestibular para dar um atestado de neutralidade ao
sistema meritocrático, devemos reconhecer que a falta de estudantes
negros reflete não a discriminação racial, mas, sim, o quê? Uma inteligência inferior? Claro que não, pois esse seria um argumento racista. Não
há negros na universidade, os anti-cotistas explicam, simplesmente
porque esses postulantes ao vestibular têm menos anos de estudo do que
os brancos e em escolas de pior qualidade. Seguindo essa lógica, a solução não é encontrar
mecanismos para corrigir distorções e incluir esses historicamente
prejudicados indivíduos na educação superior. É esperar
que o sistema de educação fundamental melhore (ou se alguém está com
pressa, que mude de bairro e entre numa escola de qualidade!).
Perdoem
o tom irônico desse texto – mas fico pasma com esses argumentos pois,
ao meu ver, revelam uma lógica profundamente racista. Pergunto – se não existe racismo no Brasil, como explicamos que,
casualmente, os negros são os mais pobres, os mais doentes, os menos escolarizados da população? Se não é por causa da discriminação racial, deve ser por incompetência mesmo…. Quanto
à questão do "racismo institucional", podem me explicar por que a
porcentagem de negros no sistema prisional continua a bater todos os
recordes? Além do "mero" efeito da pobreza desproporcional
entre negros, pesquisadores como Sergio Adorno já demonstraram que,
diante de acusações semelhantes, o réu negro é preso e condenado com
muito mais freqüência do que seu cúmplice branco…
Aliás,
é difícil entender como os anti-cotistas podem se abraçar aos
argumentos sofistas de um jornalista, Ali Kamel, já amplamente
criticado por sua total incompreensão da estatística (ver Luis Nassif )
quando os estatísticos mais qualificados do pais, trabalhando no IBGE e
PNUD chegam a conclusões completamente opostas.
É
como se os anti-cotistas estivessem comprando integralmente a noção da
"democracia racial" – mito cunhado por Gilberto Freyre e já amplamente
criticado por cientistas sociais durante esses últimos trinta anos. Claro que não existe segregação racial ou racismo no Brasil – do ponto de vista dos brancos que já têm acesso às benesses do ensino superior. Esses
não têm preconceito contra "pessoas de cor", desde que elas aceitem se
conformar ao lugar delas indicado pelas regras "universais" de nossa
seleção. Será que algum jovem afro-brasileiro já mostrou
ressentimento pelo fato de que não encontra praticamente nunca um
médico ou dentista negro? De que, conforme o IBGE, o negro brasileiro, em 2000, ganha na média a metade do que ganhava o branco brasileiro
em 1980 (com valores corrigidos)? De que um colega branco tem mais de cem vezes as chances de entrar na universidade (obrigada André). Bem
– talvez haja um pouco de ressentimento – mas esse ressentimento não é
nada em relação ao ódio racial que os brancos vão sentir se imaginam
que algum negro está "burlando" o sistema (que sempre funcionou tão
bem!) e passando na frente da fila. É assim que devemos entender o argumento dos anti-cotistas?
Se a maioria desses argumentos soam absurdos, há alguns que expressam uma dúvida compreensível. Será que cotas na universidade pública vão servir para combater a discriminação racial e desigualdade social no Brasil? É evidente que, nessa sociedade complexa, não é
possível prever todas as variáveis que vão influenciar os resultados –
positivos e problemáticos – das cotas. É também evidente que uma política isolada não surtirá por si só grande efeito.
Por outro lado, a situação atual é intolerável para
qualquer cidadão consciente do grau de desigualdade (racial e social)
em nosso país.
Já
existem mais de trinta instituições no país experimentando diferentes
formas de cotas e, ao que tudo indica, não ocorreu nenhum cataclismo.
Na
grande maioria de casos, as cotas não semearam conflitos raciais entre
os estudantes, não provocaram a perda de prestígio, nem a repentina
degringolada de qualidade do ensino superior. Em outras
palavras, a experiência com cotas – tal como a experiência com cotas
para mulheres, indígenas,"nordestinos", ou qualquer outra categoria — rende resultados diversos que valem a pena ser observados, analisados para reconhecer erros e ir aprimorando o sistema. Mas, para tanto, temos que ter a coragem de ensaiar novas políticas.
A luta contra o assustador status quo tem que começar em algum lugar. E onde melhor do que numa instituição que se preza por sua reflexão crítica e politicamente engajada?