Por Paulo Müller – Bacharel em Ciências Sociais pela UFRGS e mestrando em Antropologia Social pela UNICAMP
Há dois anos atrás, um amigo, proveniente da Guiné-Bissau, negro, aluno
intercambista de uma universidade gaúcha contou-me que sofrer "atraques" da
polícia é algo comum em sua vida. Mas destaco uma situação específica que
narrou. Em um desses atraques, após revistar e conferir a documentação do
suspeito, o policial o liberou e desculpou-se por não saber que ele era
estrangeiro, e que estudava na universidade. Dentre todas as possibilidades de
identificação do sujeito, porque o policial não partiu da categoria
"estrangeiro" ou "estudante", que foi o que o salvou?
Cotas raciais e sociais devem ser implementadas na UFRGS e em outras
universidades e instituições também, mas não somente, como forma de reparação do
preconceito racial e de classe. A implementação das cotas deve ser pensada como
ato único de explicitação do preconceito, independente de sua adjetivação.
Entretanto, é possível apontar certas confusões entre estas formas de
preconceito difundidas na sociedade brasileira. Em primeiro lugar, deve-se
perguntar por que a população negra tem um percentual maior de sujeitos em
situação de miséria do que a população branca. Em segundo lugar, deve-se
perguntar por que a população negra pobre é classificada como negra e pobre e
os brancos pobres são classificados como brancos que também são pobres.
Terceiro, deve-se perguntar por que outras mobilizações políticas são
classificadas como mobilizações políticas e a mobilização política pelas cotas
é classificada como mobilização política dos negros.
Certamente muitos outros questionamentos são possíveis. E o fato de que
"negro" é uma categoria marcada na sociedade brasileira não é nenhuma novidade.
A novidade é que a atualização disto se mostra na luta anti-cotas. Pessoas
aderem a determinadas "causas" sociais por se identificarem com estas em meio a
muitas outras identificações possíveis, sem dúvida acompanhadas e motivadas
pelo interesse de se beneficiar das conquistas do movimento. Se a identificação
é livre, então por que a causa do negro, que se organizou e lutou por isso,
deve ser solapada pela causa do pobre? De qualquer forma, não temos aí a
resolução dos problemas brasileiros, mas a possibilidade de contemplação de uma
gama altamente considerável de sujeitos impossibilitados, até o momento, de
cursarem faculdade devido ao seu histórico enquadramento em papéis subordinados
dentro da sociedade brasileira.
A inclusão da discussão sobre cotas na agenda política em diversos
níveis – estatal, governamental, institucional – pode ser encarada como uma
vitória porque reverte essa tendência de hierarquização e despriorização da
questão racial. Por outro lado, não há indicadores de vitória sobre o
preconceito decorrente da própria hierarquização de papéis. O que se abre é a
possibilidade de interrupção da reprodução da distribuição desigual desses
papéis segundo critérios racialistas. Tornar o preconceito visível não é
criá-lo, e tampouco combatê-lo. A implementação de cotas de vagas para negros
(pobres e ricos) e pobres (negros e brancos) na UFRGS deve ser pensada pelo
CONSUN como um processo de aumento da autonomia universitária na medida em que
aumenta a diversidade de visões e experiências sociais que a compõem,
democratizando não somente o acesso ao banco da universidade, mas também à
excelência que o consagra.