Por André Marenco – Doutor em Ciência Política e Professor do Departamento de Política IFCH/UFRGS.
Os argumentos de críticos e defensores de políticas afirmativas
convergem em um ponto: para ambos, haveria uma oposição entre a
instituição da meritocracia como regra para recrutamento acadêmico e a
implantação de mecanismos compensatórios, sociais ou raciais.
Adversários das cotas, retomando uma espécie de retórica da ameaça
(Hirschman, 1992) afirmam que sua adoção eliminaria o mérito e o
conhecimento prévio, premiando os menos capazes, com efeitos agregados
sob a forma de mediocrização universitária. Defensores das cotas
subestimam o significado racionalizador de
instituições meritocráticas, resumindo a discussão com o argumento de
que fins socialmente justos justificam a adoção dos meios necessários
para atingi-los.
O equívoco de ambos consiste em não perceber a coerência
existente entre meritocracia e a adoção de uma regra de cotas como
procedimento para a ocupação de vagas universitárias. Em suas origens,
meritocracia surge como alternativa ao status herdado pelo nascimento
como critério para ocupação de postos públicos. Trata-se de substituir
ascription por achievement, premiando a capacidade individual e não o
berço na configuração da hierarquia social. A ironia é que vantagens
adscritivas foram capazes de adaptar-se às novas regras impostas pela
individualização das sociedades modernas, reconvertendo capital
econômico e social familiar, em capital escolar (Bourdieu, 1989,
Boltanski, 1982). Investindo, desde o ensino fundamental, na formação
escolar de seus herdeiros, famílias bem providas asseguram sua
continuidade no interior das instituições universitárias de maior
prestígio e qualidade, que oferecem títulos e diplomas mais valorizados
no mercado, reproduzindo hierarquias plutocráticas dissimuladas em
capacidade intelectual individual.
A conversão de exames vestibulares em simulacros de mérito
individual não deve induzir-nos ao desprezo pela relevância de regras
meritocráticas, como condição para o estabelecimento de instituições
racionais e impessoais. Trata-se de controlar as distorsões provocadas
pela origem social, neutralizando o efeito path-dependent
berço=diploma=renda.
John Rawls, o maior expoente do liberalismo político do
século XX, ao apresentar sua concepção de justiça como eqüidade,
ressalta que as desigualdades sociais e econômicas para serem
aceitáveis, devem satisfazer duas condições: estar ligadas a posições
abertas a todos, segundo condições de igualdade de oportunidades, e,
beneficiar aos membros menos favorecidos da sociedade (Rawls, 1971).
Quem quer ser liberal, que ao menos seja coerente, e honre o
significado desta consigna.
Meritocracia constitui um sistema distributivo, que confere de
modo desigual vagas e títulos universitários, premiando a capacidade,
responsabilidade e talento individuais. Para que seja justo, é preciso
que esteja baseado em uma efetiva igualdade de oportunidades, julgando
apenas o esforço e competência individual, e não o sobrenome (o que,
parece óbvio, não constitui mérito próprio). Desta forma, instituir um
sistema de cotas é a alternativa eficaz e racional para assegurar um
indispensável critério meritocrático, como procedimento para o
recrutamento aos bancos universitários.
A probabilidade de um branco ingressar na universidade é,
no Brasil, 137 vezes superior a de um negro. O percentual de negros com
diploma universitário hoje no Brasil equivale ao dos Estados Unidos dos
anos 40, quando leis segregacionistas estaduais impediam negros de
frequentar, como alunos, universidades para brancos. Equivale ao
percentual de negros com diploma na África do Sul, durante o apartheid
(PNUD, 2005). Frente a estes números, questionar se existe racismo ou
se a implantação de cotas raciais poderiam introduzir o racismo no
Brasil, é um modo de tergiversar sobre o problema. Na ausência de
oportunidades e de mobilidade social reais, conflitos raciais estão
presentes da pior forma possível, traduzidos nos indicadores de
violência e criminalidade, enquanto nossa classe média vive seu Baile
da Ilha Fiscal, falando em harmonia racial e talento individual.
Políticas afirmativas devem oferecer oportunidades de
mobilidade social inter-geracional, projetando as condições para a
constituição de uma ampla classe média negra, que incremente uma
economia de mercado no Brasil. Trata-se de ir além da hipocrisia de
falar em cursos técnicos e profissionalizantes para jovens pobres e
negros, como se fosse suficiente oferecer a estes a auspiciosa
perspectiva de serem, no futuro, balconistas, garçons ou
recepcionistas. Teremos harmonia racial quando for corriqueiro
consultar-nos com médicos negros, sermos julgados por magistrados
negros, dirigidos por executivos negros e ensinados por professores
negros. Mas, talvez, seja isso precisamente que amedronta nossa classe
média.
O artigo do prof. andré é muito objetivo e ataca o centro da argumentação contra as cotas no sistema universitário: a defesa de uma meritocracia que oculta as imensas desigualdades d econdições na disputa por espaço nas Universidades; e a grande Hipocrisia de que as cotas criarão discriminação racial no brasil, como se os Negros não sentissem esta discriminação em seu cotidiano. Manter a atual situação é manter a discriminação.
A utilização de modelos estatísticos e comparações como outros momentos e países torna visível o que algumas pessoas não querem ver: na sociedade brasileira uma pessoa negra tem menos oportunidades e mais desestímulos para ascender socialmente.
O prof. André Marenco atinge o ponto mais nevrálgico de toda a discussão nesse texto: a questão da meritocracia e da manutenção de privilégios pelos que são contra as cotas.
Suas palavras são um verdadeiro “tapa de luva” na cara dos contrários à diversidade na Universidade.