Introdução:
as classes sociais e a diversidade cultural e política
Ao
propor o estudo das relações sociais entre as classes,
relações essas que são responsáveis pelo movimento estrutural
de mudança social nas sociedades capitalistas, Marx
evidencia em sua obra que entre as determinações da
constituição das classes estão os relacionamentos intra-classe,
ou seja, que ocorrem entre os próprios trabalhadores
ou entre os próprios capitalistas, e que podem ou não
levar à emergência da consciência de classe “para si”.
Classificar, portanto, as classes objetivamente, de
acordo com a sua participação na divisão social do trabalho
e com a propriedade sob o seu controle não é a única
maneira de explicitar as dimensões dos grupos humanos.
O método marxista de investigação exige o estudo rigoroso
das situações concretas visando a saturação histórica
do existente, sem apriorismos ou tipificações. Entretanto,
para recorrermos a uma lição de um estudioso marxista
da realidade brasileira como o professor Francisco de
Oliveira, “sem dúvida, existe um problema fundamental
na utilização da teoria marxista das classes sociais.
Frequentemente, nesta utilização, a esfera da produção
é privilegiada, isto é, a infra-estrutura como determinante,
enquanto a política é relegada ao plano longínquo da
superestrutura, como um simples reflexo” (Oliveira,
1987: 11).
Como procuramos demonstrar no artigo “Ações afirmativas
e cotas do ângulo do marxismo”, publicado no número
29 da revista Universidade e Sociedade, o próprio
Engels assumiu a responsabilidade dele e de Marx por
alguns exageros dos seus seguidores:
“Marx
e eu temos, nós próprios, que ser culpados, em parte,
de que, por vezes, seja pelos mais jovens dado mais
peso ao lado econômico do que o que lhe cabe. Nós tínhamos
de acentuar, face aos adversários, que o negavam, este
princípio principal e nem sempre havia tempo, lugar
e oportunidade para dar a devida importância aos restantes
momentos participantes na ação recíproca”. (Marx e Engels,
1983: 549)
Não é recomendável, portanto, deduzirmos de um modelo
geral abstrato, ou exclusivamente das condições econômicas,
as característica particulares das relações sociais
que ocorrem em uma determinada sociedade. Ao contrário,
deve-se proceder a uma investigação empírica sobre as
relações sociais efetivas e como se constituíram historicamente.
Apesar de o capitalismo gerar a estratificação econômica
e política nas sociedades modernas, na vida cotidiana
dos indivíduos se desenvolvem representações singulares
sobre a vida e sobre o outro, dentre as quais podemos
encontrar as formas de classificação preconceituosas
que levam aos tratamentos discriminatórios. As divisões
e barreiras que separam as faixas etárias, gêneros,
formas de orientação sexual, grupos étnicos e raciais,
por mais imaginários que sejam provocam resultados materiais,
objetivos, sobre as posições que serão ocupadas pelos
indivíduos e grupos humanos na sociedade.
Em outras palavras, os relacionamentos entre os humanos que
formam os agrupamentos que se constituem, se reconhecem
e são reconhecidos como classes sofrem a influência
de fatores ideológicos e políticos, como é o caso da
discriminação étnica e racial. Para recordarmos alguns
exemplos marcantes, basta pensarmos na atitude de alguns
segmentos de trabalhadores sindicalizados existentes
nos Estados Unidos ou na Europa, atualmente, que discriminam
racialmente os trabalhadores imigrantes, em razão das
alterações que provocam nas condições competitivas nos
mercados de força de trabalho nacionais. Um outro exemplo
da influência das relações étnicas ou raciais nas relações
sociais de classe foi a discriminação contra os empresários
considerados de origem judaica por parte dos empresários
alemães que apoiaram o regime nazista.
Como hipótese podemos até supor que embora não haja
antagonismo econômico entre os membros de uma mesma
classe, em muitas sociedades contemporâneas a existência
de um número insuficiente de postos de trabalho em virtude
do desenvolvimento tecnológico pode gerar uma disputa
entre os próprios trabalhadores, que toma a forma ideológica
e política de animosidade nas relações entre os grupos
humanos que se consideram de raças, etnias e culturas
diferentes.
I
– A formação das classes trabalhadoras e a questão
racial no Brasil
Na divisão social do trabalho no Brasil historicamente
as ocupações e a remuneração da força de trabalho não
são definidos exclusivamente pela relação mercantil
de compra e venda de mercadorias, como seria de se esperar
em uma sociedade de mercado, mas, entre outros fatores,
a partir da cor ou raça do trabalhador.
Para entendermos esse fenômeno é preciso que seja levado
em consideração que as classes trabalhadoras se constituem
no Brasil após a dissolução do regime de trabalho escravista.
Como também nos explica o professor Francisco de Oliveira
ao tratar da constituição das classes sociais na Bahia,
“a questão negra só pôde se pôr como diferença a partir
do momento em que a divisão social do trabalho trabalha
a cor como determinante das diferenças particulares
entre uma força de trabalho geral que se põe para o
processo de acumulação de capital”. (Oliveira, 1987:
113).
Vamos discutir um pouco melhor sobre o relacionamento
de brancos e negros em nossa sociedade. Em qualquer
das instâncias de poder e de prestígio levadas em conta
atualmente os negros ocupam as posições que lhes são
destinadas previamente. A sociedade brasileira se acostumou
com o tratamento diferenciado reservado para os negros,
pois assim os tornam úteis para
a realização dos trabalhos considerados sujos,
pesados e de baixa remuneração.
Ao utilizarmos, então, os critérios de diferenciação
social próprios das sociedades modernas como
renda, propriedade, escolarização, prestígio
das ocupações, caráter manual ou intelectual do trabalho,
forma e valor da remuneração, local de trabalho, posição
na divisão social do trabalho, participação nas instâncias
estatais de poder e estilo de vida, com maior ou menor
acesso aos bens e serviços de consumo, ao longo de toda
a história da sociedade brasileira vamos encontrar os
indivíduos considerados negros como mais suscetíveis
de se posicionarem nas piores posições.
Para que isso ocorra na prática foi preciso que se desenvolvessem
mecanismos de identificação, muitas vezes incorporados
pelos próprios negros, como a idéia de que os negros
são bons no esporte, na dança, na música
popular, na culinária, são fortes para os trabalhos
braçais, ao mesmo tempo em que são indisciplinados para
aquelas atividades que exigem paciência, concentração,
persistência, inteligência e racionalidade. Para o pensamento
racista estas últimas capacidades seriam mais adequadas
aos europeus e seus descendentes considerados brancos.
No Brasil a discriminação dos trabalhadores cuja cor
da pele é considerada mais escura levou ao chamado branqueamento
da força de trabalho, inclusive por meio de políticas
estatais de incentivo à importação da mão-de-obra imigrante
européia. Consciente ou inconscientemente, muitos trabalhadores
tiveram, muitas vezes, que optar pela não-identificação
como negros, identificando-se e sendo identificados
como pardos, morenos etc., para que fosse evitada a
sua alocação em uma posição desprestigiada da divisão
social do trabalho.
Ao inserir-se na divisão social do trabalho capitalista
no Brasil, o trabalhador negro não é percebido apenas
como portador da mercadoria força de trabalho, mas sim
como um negro, ex-escravo, inferior, incapaz, indolente,
sem capacidade de poupança, inapto para a competitividade
do mercado. Por isso até hoje persiste entre os trabalhadores
negros a tendência de que sua remuneração seja inferior
à dos trabalhadores não-negros, como apontam a maioria
das pesquisas sobre o tema. É claro que tendo como última
alternativa a marginalização e a exclusão total os trabalhadores
negros toleram essa sobre-exploração de sua força-de-trabalho.
Para recorrermos a um outro estudioso que assume a orientação
metodológica marxista, o professor Clóvis Moura, podemos
dizer que
“O
negro urbano brasileiro, especialmente do Sudeste e
Sul do Brasil, tem uma trajetória que bem demonstra
os mecanismos de barragem étnica que foram estabelecidos
historicamente contra ele na sociedade branca. Nele
estão reproduzidas as estratégias de seleção estabelecidas
para opor-se a que ele tivesse acesso a patamares privilegiados
ou compensadores socialmente, para que as camadas brancas
(étnica e/ou socialmente brancas) mantivessem no passado
e mantenham no presente o direito de ocupá-los. Bloqueios
estratégicos que começam no próprio grupo familiar,
passam pela educação primária, a escola de grau médio
até a universidade; passam pela restrição no mercado
de trabalho, na seleção de empregos, no nível de salários
em cada profissão, na discriminação velada (ou manifesta)
em certos espaços profissionais; passam também nos contatos
entre sexos opostos, nas barreiras aos casamentos interétnicos
e também pelas restrições múltiplas durante todos os
dias, meses e anos que representam a vida de um negro”.
(Moura, 1988: 8)
Em
sua obra “A integração do negro na sociedade de classes”,
o saudoso professor Florestam Fernandes pesquisou exaustivamente
o processo de constituição da sociedade de classes em
São Paulo após a Abolição do regime de trabalho escravo
no Brasil, em 1888, e chegou a algumas conclusões que
considero esclarecedoras sobre esse processo de barragem
econômica, social, política e cultural dos negros em
nossa sociedade:
“Perdendo
sua importância privilegiada como mão-de-obra exclusiva,
ele (o negro) perdeu todo o interesse que possuíra para
as camadas dominantes. A legislação, os poderes públicos
e os círculos politicamente ativos da sociedade mantiveram-se
indiferentes e inertes diante de um drama material e
moral que sempre fora claramente reconhecido e previsto,
largando-se o negro ao penoso destino que ele estava
em condições de criar por si e para si mesmo.” (Fernandes,
1978: 18)
Sobre a competição instalada pela classe dominante brasileira
entre ex-escravos e imigrantes europeus, escreve Florestan
Fernandes:
“No
período em que as famílias dos fazendeiros paulistas
começam a fixar residência em São Paulo e em que se
acentua a diferenciação do sistema econômico da cidade,
o liberto defrontou-se com a competição do imigrante
europeu, que não temia a degradação pelo confronto com
o negro e absorveu, assim, as melhores oportunidades
de trabalho livre e independente (mesmo as mais modestas,
como a de engraxar sapatos, vender jornais ou verduras,
transportar peixe ou outras utilidades, explorar o comércio
de quinquilharias etc.) Quando se acelera o crescimento
econômico da cidade, ainda nos fins do século XIX, todas
as posições estratégicas da economia artesanal e do
pequeno comércio urbanos eram monopolizadas pelos brancos
e serviram como trampolim para as mudanças bruscas de
fortuna, que abrilhantam a crônica das famílias estrangeiras…”
(Fernandes, 1978: 19)
“Em
Suma, a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio
destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade
de reeducar-se e de transformar-se para corresponder
aos novos padrões e ideais de homem, criados pelo advento
do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo.”
(Fernandes, 1978: 20)
Segundo o professor Florestan, para os negros o resultado
desse processo histórico de nascimento da sociedade
de classes gerou a sua exclusão social, uma vez que
“…O
negro e o mulato foram eliminados das posições que ocupavam
no artesanato urbano pré-capitalista ou no comércio
de miudezas e de serviços, fortalecendo-se de modo severo
a tendência a confiná-los a tarefas ou ocupações brutas,
mal retribuídas e degradantes… O impacto da competição
com o “estrangeiro” foi aniquilador para o negro e o
mulato, porque eles não contavam com elementos:
seja para resguardar as posições relativamente vantajosas,
já adquiridas; seja para concorrer nas sucessivas redistribuições
das oportunidades econômicas entre os grupos étnicos
concorrentes…” (Fernandes, 1978: 26)
II
– O movimento docente e a adoção de cotas para negros
Os
processos sociais expostos acima devem ser levados em
consideração ao discutirmos se o movimento docente deve
ou não reivindicar cotas para negros no ensino superior.
Penso que ficou demonstrado, graças aos argumentos emprestados
de alguns estudos orientados metodologicamente pelo
pensamento de Marx, como os cidadãos considerados negros
foram alijados do acesso às oportunidades, mesmo que
restritas, franqueadas aos segmentos não-negros da força
de trabalho no Brasil. Trata-se, agora, de discutirmos
como os docentes de ensino superior e suas entidades
representativas podem contribuir para a alteração das
situações de discriminação racial e exclusão social
apontadas. E esta, ao meu ver, deixa de ser uma questão
teórica ou metodológica, para se transformar em uma
questão de valores éticos e morais que implementamos
ou não através da nossa prática pedagógica e política.
Politicamente,
acredito que afirmar a existência de racismo no interior
das próprias camadas sociais de não-proprietários de
capital não inviabiliza uma potencial unidade classista.
Por outro lado, dificilmente tal unidade pode ocorrer
se ignorarmos as diferenças étnicas, de gênero, de aparência
física, etárias e de orientação sexual entre os trabalhadores.
Só
a partir do reconhecimento da discriminação racial,
sofrida por uma parte considerável das camadas trabalhadoras
em nosso país, poderemos trabalhar contra os efeitos
provocados por tal discriminação, dentre os quais estão
as dificuldades de escolarização dos trabalhadores negros,
que nos levam à proposição de medidas práticas como
a adoção de cotas, por exemplo, que comecem a romper
imediatamente com as barreiras impostas à ascensão social
vertical dos negros em nossa sociedade.
Reconheço
que o engajamento do ANDES em favor das políticas afirmativas
é problemático pelo menos por dois motivos: 1) Como
abraçar uma reivindicação que contempla efetivamente
a demanda de um segmento que talvez componha menos de
1% de sua base? 2) Como abraçar uma bandeira de lutas
que contraria a ideologia predominantemente meritocrática
de sua base?
Isso
para não mencionarmos que em uma época de restrição
do investimento estatal no ensino público as disputas
pelas posições de docente e discente no sistema universitário
assume também o caráter de uma competição interétnica,
uma vez que pais e professores majoritariamente brancos,
consciente ou inconscientemente, atuam para reservar
as melhores posições para os seus alunos e filhos, a
princípio melhor treinados para a disputa meritocrática.
Como os negros estão fora do sistema universitário acabam
sendo derrotados nas suas pretensões de ingresso na
universidade.
Acredito
que as cotas são combatidas na universidade também em
virtude desta competição interétnica mascarada pela
ideologia do mérito, que hipocritamente esconde que
a idéia de mérito na universidade frequentemente é contrariada
por um vestibular que premia aqueles que se encontram
nas posições sócio-econômicas e culturais mais vantajosas,
e é desmentida pela prática do favor e do compadrio
que muito influenciam no ingresso na pós-graduação,
na concessão de bolsas de pesquisa e no ingresso e ascensão
na carreira docente.
Defendo
a proposta segundo a qual o movimento dos docentes deve
tomar para si uma bandeira de luta dos mais explorados
entre os explorados, superando assim a pressuposição
cômoda de que todos são igualmente explorados e oprimidos
e de que só a emancipação de todos poderá resultar na
emancipação de cada qual.
O
ANDES pode assumir, ao meu ver, o papel de intelectual
coletivo que contribui para a educação dos próprios
educadores. A entidade deve, ao meu ver, priorizar nos
seus debates a reeducação dos membros de sua base, os
professores universitários, para que superem os preconceitos
ideológicos, como é o caso do pensamento meritocrático
e hierarquizador das diferenças sociais, para não mencionarmos
a persistência do preconceito e da discriminação racial
nos meios universitários, que são hoje as maiores barreira
para a efetivação de medidas educativas de reparação
em favor dos cidadãos negros.
Conclusão
Como
o Andes já é reconhecido pelo vigor como defende propostas
educativas que se confrontam com o caráter excludente
da sociedade capitalista no Brasil, assumir a bandeira
das cotas para negros será mais um capítulo na história
do compromisso do Sindicato com a proposta de uma educação
emancipadora, pautada no diálogo entre os representantes
das diferentes etnias, raças, classes, gêneros, comportamentos,
religiões, idades, aparências físicas etc… Assim,
a Universidade brasileira
realizará a sua vocação democrática, assimilando as
demandas legítimas dos agentes de dentro e de fora do
ambiente universitário.
Para concluir com a recordação da pesquisa do professor
Florestan Fernandes mencionada acima, gostaria de citar
um raciocínio crítico contra a falta de políticas públicas
de inclusão do cidadão negro na ordem social capitalista:
“Sem
as garantias de reparações materiais e morais escrupulosas,
justas e eficazes, a Abolição equivalia – nas zonas
de vitalidade da lavoura cafeeira – a condená-lo à eliminação
no mercado competitivo de trabalho ou, no mínimo, ao
aviltamento de sua condição, como agente potencial de
trabalho livre. Longe de equipará-lo ao trabalhador
assalariado branco, estrangeiro ou nacional, expunha-o
fatalmente de modo previsível e insanável, ao desjustamento
econômico, à regressão ocupacional e ao desequilíbrio
social”. (Fernandes, 1978: 43)
Por
que não iniciarmos agora, mesmo com 115 anos de atraso,
as reparações materiais, morais, escrupulosas, justas
e eficazes devidas aos cidadãos negros?
Referências
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Rosângela R. e PRAXEDES, Walter. “Ações afirmativas
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