Publicado na web-page Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira em 16/09/2003
O Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) tem revelado um quadro da qualidade da educacional nada confortador e um aumento das desigualdades no sistema de ensino, especialmente a racial. A primeira constatação é que os alunos negros são excluídos prematuramente da escola. A participação das crianças negras na última série do ensino médio representa a metade da registrada na 4a série do ensino fundamental, enquanto os brancos, que somam 44% dos alunos ao final do primeiro ciclo do fundamental, totalizam 76% na 3a série do ensino médio.
Os alunos negros que sobrevivem na escola são vítimas de uma sistemática queda de desempenho. Entre 1995 e 2001, a diferença no desempenho escolar na prova de leitura dos estudantes negros, em relação aos brancos, aumentou de 20 para 26 pontos. O estudo mostra, ainda, que, em leitura, na 4a série do ensino fundamental, 67% dos estudantes negros apresentam desempenho classificado como “crítico” e “muito crítico” contra 44% de alunos brancos. Seríamos tentados a entender a diferença de desempenho entre brancos e negros como resultado de um fenômeno de longa duração – a inserção desigual e discriminada das populações negras na sociedade nacional, após a abolição da escravidão. Certamente, há uma estreita relação entre a pobreza (econômica e educacional) e a percepção e representações sociais sobre a cor do povo brasileiro.
No entanto, os dados revelam que, mesmo entre estudantes de escolas particulares, portanto com níveis socioeconômicos similares, o desempenho entre brancos e negros não é igual. Na 4a série, em Língua Portuguesa, alunos negros alcançam uma pontuação de 179, na escala de desempenho, e os brancos de 228 pontos.
Ainda que insistíssemos em uma explicação centrada nas desvantagens historicamente acumuladas pelas famílias negras, um certo déficit de “capital cultural” expresso pela baixa escolaridade de bisavós, avós e pais, teríamos grande dificuldade de entender os dados do Saeb relativos à escolaridade da família. Alunos brancos, matriculados na 4a série (rede pública e particular) – filhos de mães com escolaridade até a 8a série do ensino fundamental – obtiveram média de desempenho de 175 pontos em Matemática, contra uma média de 160 de estudantes negros filhos de mães com a mesma escolaridade. Essa diferença de 15 pontos entre as médias de desempenho aumenta para 38 quando comparamos brancos, com mães de escolaridade média ou superior, com alunos negros, com mães de mesma escolaridade.
Não há como reduzir o campo explicativo dessa desigualdade educacional às variáveis socioeconômicas. Certamente que elas são um componente importante do problema mas não o explica totalmente. O que salta à vista é a reprodução de condições hostis aos alunos negros nas escolas brasileiras que atuam permanentemente para o agravamento das diferenças de desempenho escolar desse segmento. É preciso enfrentar, sem hipocrisia, a constatação de que a escola não é tão eficaz para os negros quanto é para os brancos. Essa evidência define os contornos de um problema a ser diagnosticado e resolvido: as desigualdades raciais são especificamente responsáveis pelas desigualdades educacionais.
Muitas são as hipóteses a serem consideradas sem reservas e sem preconceitos. Devemos nos perguntar se os conteúdos e os métodos praticados nas escolas são compatíveis com as especificidades culturais e com os anseios de cidadania da população escolar negra. Os dispositivos legais em vigor indicam que não. A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o Ministério da Educação definiu, nos Parâmetros Curriculares e nos Parâmetros em Ação, o tema transversal da diversidade cultural, pelo qual pretende atuar no sentido de dar um atendimento adequado às escolas para que possam praticar a pluralidade que compõe a cultura brasileira. Sabemos que essa diretriz é largamente ignorada nas práticas cotidianas das escolas no Brasil. É também significativo o reconhecimento governamental de que a história e a cultura negra no Brasil estão ausentes na formação dos cidadãos brasileiros e, por isso mesmo, promulgou a lei que tornou essas matérias obrigatórias em todas as escolas e em todos os níveis de ensino. Implementar essa legislação em vigor é um desafio que está sendo enfrentado pelo Ministério da Educação que conta, para tanto, com o apoio do Ministério da Cultura, por meio da Fundação Cultural Palmares. A promoção da cultura negra nas escolas brasileiras é uma das ações prioritárias para o combate às desigualdades raciais e educacionais nas escolas, porquanto o conhecimento das diferenças traz consigo a possibilidade de um novo hábito de convívio, mutuamente respeitoso entre alunos de diferentes cores e culturas.
Para além de conteúdos e métodos, não podemos perder de vista as relações sociais dentro da escola e no seu entorno, nas quais se reproduzem práticas discriminatórias contra alunos negros, configurando um ambiente de hostilidade. É preciso investigar as relações entre professores e alunos, entre os alunos, entre as famílias e as escolas. Os estudos indicam que aí se reproduz um racismo difuso, silencioso e habitual, fundamentado na cristalização de representações negativas do estudante negro. Não é mais possível esconder que a expectativa do fracasso pesa como permanente suspeição contra o negro. Conclui-se, pois, que qualquer ação de enfrentamento da desigualdade educacional deve ser acompanhada de políticas eficazes de combate ao racismo.
* Carlos Henrique Araújo é diretor de Avaliação da Educação Básica do Inep/MEC e Ubiratan Castro de Araújo é presidente da Fundação Cultural Palmares/Ministério da Cultura