Se raças não existem, é inegável que insistem!

 
Carta aberta do pofessor José Carlos dos Anjos – Dr. em Antropologia e Professor do Departamento de Sociologia IFCH/UFRGS – aos docentes contrários as políticas de ações afirmativas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Dizem especialistas que fazendo um cruzamento sistemático entre a pertença racial e os indicadores econômicos de renda, emprego, escolaridade, classe social, idade, situação familiar e região ao longo de mais de 70 anos, desde 1929, chega-se à conclusão de que no Brasil, a condição racial constitui um fator de privilégio para brancos e de exclusão e desvantagem para os não-brancos. Do total dos universitários, 97% são brancos, sobre 2% de negros e 1% de descendentes de orientais. Sobre 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza, 70% deles são negros. Sobre 53 milhões de brasileiros que vivem na pobreza, 63% deles são negros.

O carnaval se aproxima. Nossos sentidos estão adequados a uma partição de fenótipos por espaços sociais. Lemos rostos todos os dias, em cada lugar, como lemos nossos livros e desconfiamos de algumas proposições. Se sairmos de uma sala de aulas da UFRGS numa sexta à noite para irmos a uma quadra de escola de samba, nossa ontologia racial se impõe numa evidência: um fracionamento de espaços sociais por raças como se o território da universidade fosse dos brancos (daí meu mal estar cotidiano) e a quadra pertencesse aos negros (como reclama com sustentável dignidade, o passista). É evidente que são poucos negros em uma sala de aula da UFRGS para muito poucos brancos na escola de samba.

Apenas a CONEN – Coordenação Nacional de Entidades Negras – agrega mais de trezentas entidades do movimento negro, Unegro e MNU são outras entidades nacionais com agremiações em quase todos os Estados brasileiros; qualquer um que tenha participado de reuniões iniciais de entidades do Movimento Negro sabe que o rito de iniciação no engajamento militante  passa por cerimônias dolorosas  de explicitação espontânea de vivências da condição de vítima de racismo; entre os não militantes é crescente o número de depoimentos em agências como o SOS – Racismo, sem contar as delegacias nada preparadas para receber e muito menos contabilizar as denúncias de racismo. Mas a evidência insiste que essa partição espacial e essas denúncias evidenciam um racismo insistente e persistente: não basta a história, não bastam os números, não bastam os depoimentos dos negros, não basta a nossa sensibilidade de qualquer dia desses (passe por lá e saiba do que estamos falando!)?

Que a não existência do racismo possa ser decidida, apesar dos depoimentos dos negros (e brancos), apesar dos números das estatísticas, isso surpreende! O que surpreende é a pergunta sobre esse lugar privilegiado de acesso ao real, essa arrogância epistêmica, esse protocolo que vence objetividades (tão desconstruíveis) e subjetividades (tão passiveis de serem relativizadas).

Meu caro divino, mas de onde você está falando, cara-pálida? Que lugar inacessível é esse que te permite definir os objetos de meu mundo apesar de mim, os objetos do teu mundo apesar das tuas estatísticas? Como decides sem mim as fronteiras entre mim e ti, quando elas existem e quando não existem? O que te permite partir e repartir o mundo em crenças paranóicas e racistas de um conjunto de movimentos sociais negros e a verdade subjetiva de todo o resto supostamente não racializado? Apenas o olhar arrogante da tua bela ciência? O que te permite definir quando o que o “nativo” diz deve ser levado em conta e, sobretudo, quem é o “nativo” que merece teu crédito? Esse lugar de enunciação que supõe acesso tão privilegiado ao real, que vos permite dizer que não existe o racismo que sobre meu corpo insiste, não é o sinal mais flagrante de vossa branquitude? 

– se você disser que possui protocolos científicos muito mais razoáveis do que as dores que me colam à pele e reinventam a cada dia meu confinamento negro, te direi que é exatamente disso que estou falando: que queremos também um lugar sob esse sol que vos permite dizer coisas tão razoáveis (porque suspeito que continue a não ver as mesmas coisas que você vê, porque viemos de historicidades diferentes e nossas ontologias precisam ser negociadas para que encontremos mundos comuns). É essa necessária diplomacia que reclama presenças negras mais numerosas na universidade. E você pode não estar certo sobre a inexistência do racismo!

Diz, displicentemente, um dos maiores antropólogos brasileiros da atualidade que “já há coisas demais no mundo que não existem” para que o antropólogo continue se dando ao luxo do inventário das inexistências! Na disciplina, esse já displicente senso do (mal) estar entre ontologias variáveis não tem sido compartilhado como uma ética do cuidado com as existências, essas delicadas criaturas. Muitos de nossos colegas insistem em arbitrar sobre o que existe e o que não existe desgraçadamente – apesar das dores de “seus nativos”.

Está nos fundamentos dessa disciplina particularmente preparada para lidar com a alteridade que é a antropologia, a suspeita sistemática de que os objetos insistentes no mundo prévio do pesquisador possam não ser tudo o que existe. E que as dores, convicções e cosmologias dos outros também se referem a coisas que de fato existem e que talvez estejam além das ontologias “razoáveis” do pesquisador. Isso faz a felicidade da crítica sistemática ao etnocentrismo e institui a própria noção de alteridade que baliza a disciplina. Tem sido surpreendente a ausência dessa humildade disciplinar na voz de diversos cientistas sociais brasileiros quando lidam com a questão racial. Não seria básico perguntar antes de decretar a inexistência: “o que é o racismo que eles dizem que sofrem?”; “O que significa para eles o racismo?”; “Quanto e como consigo traduzir esse afeto (modo de afetar o mundo e de ser afetado nele)?”

Que o racismo não exista, isso só não surpreende numa ligeireza jurídica que esvazia o conteúdo sociológico de uma relação de desumanização na desgraçada formalidade da busca de evidência de interdição/proibição: Se você chama o sujeito de negro sujo você o ofendeu, mas não interditou nada, portanto trata-se de ofensa e não de racismo! Que esse negro nunca mais tenha condições subjetivas de voltar ao lugar do insulto, isso não é um problema do jurista! Mas nós? Vamos nos ater a temporalidades tão confinadas, tão decepadas dos encadeamentos históricos mais substantivos?

Se raças de fato não existem, pelo menos no Brasil insistem! Insistem nos números, insistem nos depoimentos negros, assim como está presente nas vossas mais humanistas declarações de intenções a respeito de cotas na universidade.

Raça é algo que a modernidade não pára de fazer inexistir, seja através dos atuais processos de controle de fluxos mundiais de populações, ou no antigo projeto nazista de extermínio daquilo que seus ideólogos inventaram como a mais radical alteridade do povo alemão, ou através do processo de censura sobre o termo raça e ainda nas múltiplas formulações humanistas condenando o racismo… De todo o modo, a gestão da inexistência insistente de raça é um dos problemas cosmopolíticos dos modernos: como repartir as coisas e pessoas  que existem de modo que raças não existam convincentemente? É disso que as nossas estatísticas falam: as coisas que existem e que valem a pena (que são capitais, recursos para outras coisas, passaporte para outros caminhos) não estão suficientemente bem repartidas para que raças tanto não existam como não insistam. 

Um de nossos problemas modernos é exatamente o da infinitude desse processo de fazer inexistir raças, a demorada implausibilidade de tornar convincente essa inexistência quando todas as demais partições de nossos espaços sociais parecem deixar flagrante a ausência da inexistência de raças.

Porque tanta insistência em demonstrar o que não existe, senão porque raça insiste em ser um problema histórico não passível de ser contornável apenas discursivamente?  É da existência histórica dessa insistência, da existência dessas múltiplas políticas para fazer inexistir, que estamos falando. O que está subjacente a tanta insistência? Um geneticista talvez possa deliberar sobre a existência de raças do ponto de vista biológico, mas não pode decidir sobre nossas ansiedades para que se pare em falar em raças, sobre como produzir políticas de desracialização das mentalidades e dos dispositivos objetivos de produção de repartições de populações nos espaços sociais. Esse é o nosso problema histórico, social, nem minimamente genético.

O que está em jogo é que a polícia me reconhece como negro sem me pedir a carteira genética; que os meus colegas, francamente, imediatamente me reconhecem como negro sem um teste de DNA, apesar de cientistas e de sua maldita hermenêutica da dúvida sistemática; meus alunos até desconfiam que meu excesso de melanina possa carregar junto outros excessos e, sobretudo muitas deficiências… É do peso histórico do efeito agregado de milhares de reconhecimentos cotidianos ligeiros e insustentáveis como esses que estamos falando. Trata-se de falar de raça do prisma sociológico e enquanto efeito histórico de dispositivos objetivos e de disposições subjetivas para repartir e definir o lugar das pessoas tendo como uma das bases de impressão (é preciso lembrar Goffman e a política da primeira impressão na estruturação das interações cotidianas?): o fenótipo. O “lugar de negro”, esse princípio de partição que muitos de nós gostaríamos de banir, se faz evidente porque existe esse substrato material causador de impressões marcantes em disposições subjetivas preparadas para racializar.

O anti-racismo ligeiro não percebe que a inexistência de raças não se faz por um passe de mágica de uma enunciação científica. Não é porque cientistas dizem que raças não existem que elas passam a não existir socialmente. Historicamente a não existência de raças precisa ser praticada, inventada, imaginada em dispositivos institucionais concretos, tornada presença visível de negros na ossatura institucional da nação até que se naturalize tal presença. Se a presença de negros, nos espaços mais caros da nação não for tão visível a ponto de se tornar natural, estaremos condenados a ter a presença visível da insistência de raça.

É por isso que o problema das modalidades de inserção positiva e visível do negro brasileiro na ossatura institucional da nação em nada reclama os palpites políticos de cientistas da genética. Políticas relacionadas a patrimônio genético merecem bem uma atenção decisiva desses profissionais. Quanto a políticas afirmativas a favor de negros e indígenas, cabe perguntar a cada um dos partícipes da assembléia de quem sua sensibilidade especial lhe faz porta-voz:  Dos negros, dos indígenas, dos brancos, de mestiços, da bandeira nacional, da mulata ardente, etc.? Essas entidades de fato não existem nos minúsculos mundos científicos dos geneticistas! Estes deveriam defender políticas de genes como cientistas e palpitar sobre raças do ponto de vista político como qualquer outra voz cidadã. Não deixa de surpreender, nesse surpreendente Brasil, que geneticistas tenham se tornado experts abalizados, consultáveis em políticas públicas referentes a dimensões históricas gigantescas e macroscópicas da nação brasileira. Para tanta pretensão deveriam agregar ao menos duas especialidades!

Esquecem-se, por vezes, alguns “cientistas” que a temporalidade das ciências não é a mesma das demais dimensões das mentalidades de nossa época. Que a mentalidade racista vem sendo praticada no Brasil há cinco séculos enquanto que as descobertas da genética sobre a inutilidade da categoria raça é algo bem mais recente, deveria ser trivial! Sobretudo, que a penetração na vida social das descobertas das ciências obedece a ritmos e está sujeita a reinterpretações imponderáveis, tardias e desconcertantes, também a essa altura deve ser trivial. Mas o problema dessas trivialidades é que são inconseqüentes para esse ligeiro pensamento anti-racista que, como diria o velho e bom hoje inominável, “confunde as coisas da lógica com a lógica das coisas”.

Então cabe repetir: para o bem e para o mal, só uma ínfima parcela dos brasileiros são cientistas. Não apenas muitos poucos detêm os rudimentos dos conhecimentos dos geneticistas, mas, mais ainda, nós os cientistas sociais precisamos lidar não apenas com o que existe de fato para os biólogos, mas também com os efeitos globais das práticas associadas ao que os demais brasileiros acreditam que existe. É disso que estamos falando, do efeito global de raça que muitos brasileiros de muitas maneiras diferentes praticam como “existências”.

E do que alguns “intelectuais” estão falando quando dizem que políticas afirmativas de corte racial são políticas perigosas? Do que mesmo eles têm medo? Qual é o tabu que faz com que não se explicite com a mesma insistência da declaração profética qual é o perigo real e quais os seus contornos? De onde viria o perigo? Quem seria o agressor? Que disposições subjetivas estariam por trás dessa onda devastadora do nosso sublime humanismo não-racista?

Será que eles temem que a nossa generosa cordialidade racial não resista ao teste de uma equiparação da presença de negros e brancos na universidade? Será que esse patrimônio da nação que é o mito da democracia racial não serve sequer para sustentar uma nova disposição moral que exige e desafia que negros estejam tão imediatamente quanto possível convivendo com brancos em número razoável em nosso campus? Será que eles acham que brancos não conseguem conviver com indígenas a não ser na relação pesquisador-objeto? Mas então para que “raios” serve esse tal de mito da democracia racial que tanto insistem que preservemos? Porque acreditar em cordialidade racial se isso não é de forma alguma assimilável a idéia de enfrentamento solidário de um problema de desigualdade que deixa visível a ausência de negros nos campus? Será que temem que suas quimeras estejam se arruinando ao primeiro teste? É o espectro do incêndio racista na casa de estudantes da UNB que consome suas veleidades da ausência brasileira de percepção racializada de mundo?  

Se fosse apenas isso, precisaríamos nós, tão progressistas, de outras razões para desafiar disposições subjetivas tão hipócritas, mesquinhas e iníquas?

O pior é que talvez eles não concordem comigo sobre o caráter injusto de uma resposta violenta a política de cotas!  No fundo, esses intelectuais ultra-humanistas talvez concordem que esse ódio-racial-branco-nascente estaria justificado pela injustiça da “entrada não meritocrática de negros”! Talvez eles temam o potencial ainda não testado de seus próprios ódios raciais. Eles, tão humanistas!

Se assim for, viva a ligeira cordialidade racial!  Ela não sobrevive ao menor teste, mas sustenta nossos desencontrados sorrisos de corredor.

Já agora se deveria notar, antes que nos exijam uma comparação culturalmente exacerbada entre os EUA (da gota de sangue) e o Brasil (do branqueamento como fórmula de dissolução do racismo), que os diversos grupos racializados e estigmatizados por conta da noção de raça não carregam as mesmas historicidades. As fórmulas de equacionamento de suas dores e memórias de sofrimentos não são transferíveis esquematicamente. Será necessário recordar que, no Brasil, os judeus vêm passando, desde “o início da nação”, por um processo inacabado de branqueamento prenhe de dores? E que passar a ser reconhecido como branco não é igual a se desracializar? E que mesmo se fosse, as diferenças históricas e de substratos ontológicos impedem soluções similares para negros e judeus? Que gerações de negros vêm ensaiando o branqueamento sem que o quadro geral deixe de ser trágico, porque a branquitude é uma ideologia que carrega intrinsecamente uma noção de pureza que acusa todo o processo de purificação denunciável?

Para nós, os negros, a nova tragédia deriva do fato de que os donos de nossas ontologias passaram a decretar que o racismo, que sobre nós insiste, na verdade não existe!

Isso torna muito mais trágico o já agora “nosso” racismo, que deixou de ser  denunciável. Não se trata de uma operação intelectual nova, mas a escola paulista (Florestan, Bastide, Iani…) que respondeu a demanda da Unesco sobre a harmonia racial brasileira já nos havia aliviado em parte do fardo dessa inexistência.

Se já é difícil conviver com um racismo efetivamente existente, como imaginam o fato da inexistência do racismo que me fere em cada detalhe do cotidiano?  Se já era difícil o racismo real, agora, vivemos, nós os negros, o trágico do racismo inexistente como um bando de paranóicos racistas? O problema cosmopolítico é que esse é um bando grande demais para uma mania passível de ser resolvida numa instituição psiquiátrica que já não seja um outro mundo!

José Carlos dos Anjos

Dr. em Antropologia e Professor do Departamento de Sociologia

IFCH – UFRGS

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4 Responses to Se raças não existem, é inegável que insistem!

  1. Ana Rita Lima says:

    Parabéns pelo belo texto, bom mesmo seria não ter que escrevê-lo né?! Ainda temos muita luta pela frente para que um outro mundo seja possível… e ocupar espaços que é de direito de todos e privilégio apenas para uns é um passo fundamental. AÇÕES AFIRMATIVAS JÁ (COM 500 ANOS DE ATRASO!!)

  2. Carlos says:

    Caro Professor seu artigo tem a complexidade que o assunto exige e ao mesmo tempo não transige em seu cerne principal a existência do racismo entre nós na sociedade brasileira, e como afirma o também eminente antropólogo José Jorge da UNB o racismo acadêmico.
    Parabéns pelo artigo.
    Carlos Eduardo Marques- Mestrando em Antropologia e Membro do do Núcleo de Estudos Quilombolas/NUQ da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG e do Observatório da Juventude da Faculdade de Educação/FAE da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG.

  3. Parabéns, pelo artigo estimulante e consistente.
    abçs
    jr

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